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Falácias, Violência e eteceteras

Chegou-me às tantas da madrugada o dito vídeo ao telemóvel. Tê-lo-emos praticamente todos visto por esta altura: desacatos na noite reguenguense, agressões, destruição de propriedade, atropelamento, que envolveram, também, mas não só, pessoas de etnia cigana. Não é tanto sobre o vídeo em si que pretendo escrever hoje, dado que não há grande abrangência de opiniões a ter sobre o seu teor – até porque nada do que listei anteriormente será tido como bom, desejável ou meritório. Não, não vamos falar sobre o dito vídeo, ainda que, em abono da verdade, é exatamente sobre ele também que vamos falar por aqui – ou antes, sobre as reações que gerou, desde as mais eloquentes publicações nas redes sociais à deslocação mais ou menos expetável do dirigente do partido Chega ao meu bonito Reguengos.
Vamos começar por falar, na verdade, das aulas do Professor Carraça em Filosofia, que tão bem nos soube ensinar sobre falácias. No livro rabiscado que ainda tenho lá as encontrei listadas, ainda que algumas delas me tenham ficado na memória até hoje. Para o caso, vamos falar da generalização apressada. Que tal com um exemplo? Um gato arranhou-me – logo, todos os gatos me vão arranhar. Um avião caiu – logo, todos os aviões irão cair. Basicamente, é um argumento que transforma aquilo que possa ser uma exceção – sublinhe-se, possa ser; já lá iremos – numa generalização. Vamos a outro? Três pessoas de etnia cigana destruíram um café – logo, todas as pessoas de etnia cigana o farão.
O primeiro problema é, desde logo, percebermos que esta generalização poderia, aqui já regressando ao dito vídeo, ser substituída por tantas outras que, curiosamente, não vejo serem utilizadas (talvez não sirva propósitos tão importantes): três homens destruíram um café e atropelaram uma pessoa – logo, todos os homens o farão. Ou: três pessoas alcoolizadas destruíram um café, atropelaram uma pessoa, e trocaram pancadaria – logo, todas as pessoas alcoolizadas comportar-se-ão exatamente dessa maneira. Naturalmente não faz sentido: e temos N exemplos quer de homens, quer de pessoas alcoolizadas, a comportar-se de maneiras igualmente condenáveis.
O segundo problema é a argumentação que se vê a circular que tem tanto de dissonante como de seletiva. Vamos a factos: No ano de 2020, foram registados mais de 130 crimes pelas autoridades policiais por discriminação e incitamento ao ódio e violência (sublinhe-se – foram registados, o que significa que tantos outros ou mais poderá haver sem registo), registando um aumento em 37% para o ano de 2019 (sendo que se passou grande parte de 2020 em confinamento). A Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR) recebeu, também em 2020, um número de queixas que representa um aumento em mais de 50% por comparação a 2019, sendo que, das quatro multas que chegaram a ser aplicadas pela CICDR em 2020 em consequência de queixas apresentadas foi precisamente ao deputado e convidado especial na cidade de Reguengos André Ventura, por ataques à comunidade cigana.
Ora, de modo algum pretendo soar exatamente como creio que vá soar: como alguém alheado da realidade concreta de Reguengos e da dinâmica que existe (para) com a comunidade cigana. Acreditem que me mantenho o mais atualizada que me é possível. Não se pretende aqui negar que existe um problema: pretende-se aqui aceitar a verdade de que somos todos participantes ativos nesse problema – pois que tanto serve dizer que alguém se coloca proactivamente à margem e de parte como serve dizer que alguém se coloca passivamente pouco recetivo a uma verdadeira – e prática – integração. Menos choca recebermos simpatizantes da extrema direita do que não generalizar toda uma comunidade que, como tantas outras, será por certo composta por sem-fim de perfis e feitios e, pasme-se, até “pessoas de bem”, de que o Sr. Deputado André Ventura tanto gosta.
Em jeito de conclusão, e para que não restem dúvidas: condeno totalmente qualquer ato de violência – desde atropelamentos a jovens que estão apenas a apreciar a sua cerveja no fim-de-semana a exibições verbais de violência gratuita (que também li, resmas delas), passando naturalmente por manutenção de preconceitos que têm tanto de verdade como terá a presunção de que, como a Patanisca (a minha gata) me arranhou, todos os gatos me irão arranhar.◄

  • Publicado no Jornal PALAVRA, edição de agosto 2021

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