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António Manuel Boto Natário (1945-2022)

Morreu o “Tó Manel do Central”. Não foi uma surpresa, dado o estado muito debilitado em que se encontrava há já vários meses, mas foi uma grande perda para os que lhe reconheciam a enorme notoriedade que tinha na sua terra, em especial os que privaram diariamente com ele durante décadas. O seu Café Central não era apenas um estabelecimento. Era um sítio onde se estava. E quando havia vagar, passava-se muito tempo a falar com o Tó Manel. E falava-se de tudo. “Dentro de uma certa lógica…” começava ele quando queria dar a sua opinião sobre um assunto sobre o qual achava que não estava bem informado. Com o pano da loiça ao ombro, limpando copos e chávenas, e o copo de vinho ali à mão, lá ia mandando as suas bocas e as suas “maneiras de ver”. E quando a conversa aquecia, virava as costas e ia para dentro.
O Tó Manel era uma figura ímpar e genuína em tudo o que respeitava à indústria da restauração. Não era cozinheiro, mas planeava e pensava tudo. Durante muitos anos a qualidade da cozinha foi assegurada pela sua então esposa, a D.ª Maria Emília, uma cozinheira e doceira de exceção. Nesse tempo, as qualidades do Tó Manel eram aplicadas no saber receber, com o seu especial padrão de simpatia, e em gerir a sala e o bar. Fazia decorações e arranjos com os produtos, as garrafas ou os doces, e sabia criar momentos. As mesas e as ementas que preparava eram sempre criativas. Momentos únicos. Os pratinhos de presunto e paio, que cortava com esmero, as omeletes, os queijos da serra, ou de Serpa, com tostinhas, os ovos mexidos (os melhores da Europa na sua própria apreciação), as saladinhas de feijão frade ou de orelha de porco, as costeletas panadas, as empadas, os ovos verdes, os peixinhos da horta, o empadão de carne, a perdiz de escabeche, a empada de caça, os peixes no forno, o arroz de pato, a maionese de lagosta, tinham sempre o aspeto e o sabor “à Central”. Tudo era ao nível do melhor que se podia fazer.
Os serviços que fazia (casamentos, batizados, festas e eventos diversos) deixavam sempre os forasteiros de boca aberta com a qualidade da confeção e da apresentação. Já nos anos finais, porque havia dificuldade em arranjar cozinheiras, ou as que havia não correspondiam ao seu grau de exigência, passou ele para a cozinha, onde se revelou também especialista, sobretudo nas feijoadas, arrozes, açordas, borrego assado e pratos de caça, com especial destaque para o arroz de lebre.
O Central era um restaurante em que os clientes habituais tinham conta. Numa caixinha de madeira com separadores por ordem alfabética havia fichas com o nome de cada um e dentro do separador as contas que se iam arquivando. No final dos almoços, já tarde a dentro, lá aparecia o Tó Manel com a caixinha para fazer as cobranças. Havia vários grupos que tinham almoços semanais ou mensais em dia marcado, que se repetiram por dezenas de anos. Faziam já parte do plano de atividades do Central e eram uma espécie de tertúlias que normalmente se prolongavam por várias horas. E depois havia os dias especiais anuais como a véspera de natal, a feira de Agosto, as Festas de Stº António, as “reuniões do Raid”, ou outros, onde havia sempre alguma coisa de especial e em que os grupos das diversas tertúlias e pretextos se juntavam em alegres convívios familiares. O Central do Tó Manel era mais do que um café-restaurante. Era uma sala de jantar em que cada um se sentia em casa, mas onde era recebido como uma visita. O Tó Manel e o seu Central, eram conhecidos em todo o lado. Em qualquer ponto do país, falando em Reguengos, toda a gente se referia ao vinho, ao Tó Manel, e ao fascínio que era ter almoçado uma ou várias vezes no Café Central.
Aprendeu muito com o Pai, o Sr. Francisco Casco, que sabia tudo sobre produtos gastronómicos e gastronomia. Mas o Tó Manel investigava, lia, e aprendeu muita coisa pela sua própria iniciativa e com as pessoas com quem falava. Entre outros, servem de exemplo os irmãos Fialho, do Restaurante Fialho, que vinham muitas vezes às segundas feiras, o seu dia de fecho, “para apreciar” os cozinhados do Central. E normalmente a tarde acabava em longa conversa, naturalmente sobre comidas.
O Tó Manel nunca teve férias e tirando as terças feiras nunca fechava. Dedicou a sua vida ao Central e o Central foi a sua vida. Ele que nasceu ali mesmo, “onde agora é a cozinha” como costumava referir com frequência. Também tinha as suas fúrias. Se as conversas, com o pano da loiça ao ombro, aqueciam, e se alguém contrariava com mais veemência “a sua maneira de ver”, as coisas podiam acabar em gritaria. Mas no outro dia já não se lembrava da conversa e as “zangas” ficavam por aí.
O Central, e o Tó Manel em particular, foram uma verdadeira escola de hotelaria. São dezenas as pessoas que passaram pelo Central, e que estão estabelecidas na restauração, há décadas, algumas delas já com descendência no ramo.
O Café Central passou por várias gerências, desde a sua fundação, mas os seus tempos mais gloriosos foram os da sua geração e da de seu pai. Os dois fizeram do Café Central uma referência entre os “Cafés Centrais” alentejanos, como o Águias de Ouro, o Arcada, o Luís da Rocha ou os variadíssimos Cafés Portugal por aí espalhados. O Central foi um dos últimos com as características dos monumentos sociais que foram estes espaços públicos de referência. Mais do que cafés ou restaurantes, eram espaços com personalidade, muito próprios do viver Alentejano e das suas elites locais. Mas não eram elitistas, porque toda a gente neles entrava, fossem ricos, pobres ou remediados. E o nosso Central, o do Tó Manel, era peculiar. Há tanta gente, com muito menos provas dadas, com direito a nome de Rua, que não sei se o Tó Manel não mereceria uma pequena recordação que deixasse o seu nome marcado na história de Reguengos de Monsaraz. ◄

  • Publicado no Jornal PALAVRA, edição de janeiro 2023

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