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“Desenvolvimento e tiros de caçadeira”

Há uns anos largos, havia por aí uma pessoa que dizia, com frequência, farto das notícias da televisão que não se cansavam de falar em desenvolvimento a toda a hora: “Eu, quando oiço falar em desenvolvimento só me apetece puxar da espingarda e desatar aos tiros para todo o lado”. Não era literal. O homem era pacífico, o que acontece é que estava farto de ouvir falar numa coisa e de apenas ver outra e o seu contrário. A pessoa em causa era uma pessoa lúcida e informada, conhecedora da vida do campo e das práticas rurais, apesar de ser considerada atrasada e ultrapassada. Era um homem culto, no sentido em que conhecia o território em que vivia, sabia como funcionava a terra, as sementeiras e as colheitas, percebia o clima e o ciclo das plantas, e vivia de uma pequena exploração, exemplar, onde tinha um bocadinho de tudo: vinha, gado, olival, horta, cereais e montado. Tinha também abelhas e mel. A sua pequena herdade estava bem equipada com poços, noras e charcas. Aproveitava a água das chuvas, para uso caseiro, em cisternas estrategicamente colocadas. E tinha ainda a “criação”, animais que se alimentavam de verduras e dos desperdícios da exploração – galinhas, coelhos, porcos, perus. Era a chamada fartura da casa. Dava para todos, para o homem e para os trabalhadores que também tinham o seu quinhão.
O homem persistia em manter formas de trabalho arcaicas como a nora com engenho puxado por uma mula e moinhos de vento nos poços, que abasteciam vários tanques de rega. Circulava no interior da propriedade, para o seu trabalho diário, numa charrete puxada por um cavalo, que usava também para ir às compras à vila. Já tinha algumas máquinas, como um trator, mas pouco mais. A maior parte do trabalho ainda era manual. Isto era assim nos anos 90, ou seja, há pouco mais do que hà 30 anos.
Ele apoquentava-se quando ouvia falar em desenvolvimento porque o que ele via era sempre acrescentar despesas à sua vida. Não paravam de o desafiar para projetos para adquirir motores, máquinas disto e daquilo, eletrificação dos sistemas de rega e de captação de água, e ele o que via nesses “investimentos” era apenas as despesas acrescentadas com as aquisições, os juros dos empréstimos e os custos com a eletricidade, os combustíveis, as oficinas, as peças das máquinas quando viessem a avariar. Por isso, ele não podia ouvir falar em desenvolvimento, porque para ele o desenvolvimento significava mais despesas, mais problemas, mais responsabilidades, e pouca perspetiva de aumentar a produção o suficiente para fazer face às novas despesas.
Passados uns anos e a agricultura “desenvolveu-se”, com grandes projetos agrícolas e profundos investimentos financiados pelos fundos europeus em modernização. E o que temos? Generalizadamente ouvimos críticas às novas práticas agrícolas modernas, que destroem os solos e a paisagem e apenas garantem emprego a mão de obra estrangeira, e paga de forma próxima da escravatura. Há queixas de que os produtos não têm qualidade e que são usados muitos produtos químicos. Os investimentos em novas formas de exploração (sistemas de rega, tubos, bombas e outras maquinetas), são pagas com projetos e muitos empréstimos bancários. Os juros até estão baixos, mas os bancos inventam outras taxas, sprads e emolumentos que tornam o dinheiro sempre caro. Ou seja, as preocupações do homem que não queria ouvir falar do desenvolvimento, estão aí. Os custos com as energias, os custos com a manutenção das máquinas, a dificuldade de escoamento dos produtos locais quando os supermercados têm de tudo mais barato e vindo dos quatro cantos do mundo e fazem concorrência desleal, obrigando os produtores locais a esmagar preços.
Mas, surpreendentemente, está aí também e paralelamente, a constante valorização dos processos tradicionais e os apelos aos produtos locais e à agricultura biológica, e a denúncia dos abusos dos produtos químicos que destroem e contaminam os solos e as águas. Afinal, o homem que lhe apetecia puxar da espingarda e desatar aos tiros sempre que lhe falavam em desenvolvimento, não estava errado de todo. Ele até tinha uma vida boa e com os seus processos rudimentares produzia produtos de qualidade e conseguia manter bastantes postos de trabalho na sua exploração antiquada. Se hoje se mantivesse essa exploração, nos moldes em que existia, ela seria considerada uma exploração exemplar, e os seus produtos considerados “gourmet” e vendidos em lojas de valor acrescentado.
A agricultura que durante anos foi displicentemente chamada de subsistência é agora importantíssima e denominada de “sustentada”. As grandes superfícies já não são detentoras da primazia da venda de produtos importados. As pequenas mercearias, lugares de fruta e mercados vão começando a ser valorizados pela qualidade desses produtos. Voltar aos sistemas de pequena agricultura é agora uma prática vista como inovadora e amiga do ambiente. Sustentabilidade e valorização dos produtos locais, tudo fala agora nestes dois conceitos, que já tivemos e abandonamos por serem considerados obsoletos.
Afinal, o homem que não podia ouvir falar em desenvolvimento que só lhe apetecia desatar aos tiros por todo o lado, não era afinal tão tolo como parecia.◄

  • Publicado no Jornal PALAVRA, edição de novembro de 2021

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