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ENTREVISTA: Mestre Manuel Cargaleiro, “Nada pode mudar a força e a personalidade de Reguengos”

Manuel Alves Cargaleiro nasceu em Chão das Servas, concelho de Vila Velha de Ródão, distrito de Castelo Branco, a 16 de março de 1927. Poucos anos depois, a família mudou-se para Monte da Caparica, residindo perto de algo que viria a ser a porta de entrada para o mundo das artes: uma olaria. Com 22 anos ingressou na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa e, passados três anos, surgiu a primeira exposição individual de cerâmica. Em 1954 iniciou funções como professor de cerâmica na Escola de Artes Decorativas António Arroio e apresentou as primeiras pinturas a óleo no Primeiro Salão de Arte Abstracta, na Galeria de Março, dirigida por José Augusto França. No mesmo ano, recebeu o Prémio Nacional de Cerâmica Sebastião de Almeida. A Fundação Calouste Gulbenkian atribuiu-lhe várias bolsas, que permitiram o estudo de cerâmica em Itália e França, acabando por fixar residência em Paris no final dos anos 1950. Em 1995, a estação de metro Champs-Elysées-Clemenceau, de Paris, passou a ter painéis de azulejos da sua autoria. De entre as distinções que recebeu ao longo da sua carreira, destacam-se condecorações como Comendador da Ordem Militar de Sant’iago da Espada, Grã-Cruz da Ordem do Mérito, Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique (pelos Presidentes da República Ramalho Eanes, Mário Soares e Marcelo Rebelo de Sousa, respetivamente) e Grau de Officier des Arts et des Lettres, pelo Governo francês. A exposição “A Essência da Cor” está patente na Biblioteca Municipal de Reguengos de Monsaraz desde dia 4 de setembro e ficará até dia 30. Antes, entre 23 de julho e 21 de agosto, passou pela Igreja de Santiago, em Monsaraz.

– Quem é Manuel Cargaleiro?
Agora já sou um velhote, com os meus anos todos. Sou uma pessoa exatamente igual ao pastor ou ao agricultor desta região alentejana. Digo isto porque desde muito jovem que estou ligado Alentejo, pois comecei a minha vida a modelar e a trabalhar o barro e esta era a zona dos oleiros e da cerâmica. Então, desde muito novo que vinha cá comprar peças de barro dos oleiros, levava-as para Lisboa, e depois pintava-as. Uma vez levei de cá umas caçarolas e pintei-as. O Nuno Portas, pai dos Portas [Miguel, Paulo e Catarina Portas], que era meu colega e andou comigo na escola, disse-me um dia: “Eu tenho de trazer aqui a minha mãe, pois quero que ela compre uma caçarola destas”. Eu acho que lhe pedi 200 escudos, que na altura era muito dinheiro. Ela achou o mesmo: “Tanto dinheiro por uma caçarola?”. (risos) Esta história é apenas para explicar um pouco a minha ligação a esta região.

– Que diferenças encontra na região, dessa altura para o presente?
O Alentejo é sempre o Alentejo. A personalidade de uma região com tanta história não muda. Nada pode mudar a força e a personalidade de Reguengos! Felizmente!

– Como surgiu a paixão pelas artes?
Isto é uma doença que acontece. Eu não procurei a paixão pelas artes. Foi algo que simplesmente aconteceu. Tal como podemos apanhar uma gripe, eu apanhei esta doença, uma gripe boa. Quando eu era miúdo e andava na escola, no Monte da Caparica, os meus pais, que eram agricultores, mandavam-me ir ao correio. Ao lado, havia um oleiro. Então, antes de regressar a casa, ia vê-lo a trabalhar. Para mim, ver alguém a pegar numa bolinha de barro e fazer uma peça é como um milagre. Esse oleiro costumava dar-me argila que eu depois levava para casa para modelar e fazer bonecos.

– Apesar do gosto pelas artes, chegou a ingressar na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa…
Os pais querem sempre o melhor para os filhos. Tenho quase 100 anos. Naquela altura, ser artista era sinónimo de vadio, desgraçado, pobrezinho… É óbvio que o meu pai se preocupava. Nem era bem ele, mas sim os seus amigos. “Não deixes o teu filho andar nessa porcaria”, diziam-lhe. Mas aconteceram-me muitas coisas boas. Foram os amigos, as pessoas que viram o meu trabalho, que me empurraram e descobriram. Eu trabalhei tanto que ninguém imagina. Ainda para mais, tinha a qualidade ou o defeito de ser muito generoso. Dava muita coisa. Nunca pensei muito no lado material. O meu prazer, a vida inteira, foi fazer, trabalhar, a vontade de realizar o que me passava pela cabeça.

– Que mensagens tenta passar quando pinta?
Quando trabalhamos, as linhas, as manchas, são sempre algo de positivo que quero que os outros saibam. Hoje em dia, no mundo, há duas grandes correntes nas artes: a corrente construtiva e a corrente destrutiva. Nesta última, temos artistas que, sendo geniais e fabulosos, acham que o mundo já está perdido e não há solução. Por acreditarem nisso, fazem pintura que o exprimem: uma pintura triste, em que a pessoa olha e vê a desgraça. Já a outra corrente, positiva, propõe o bem de todos, que haja paz, que a vida seja bonita. Pintores como [Marc] Chaggal, que era um sonhador e apresentava obras construtivas. Evidentemente, nunca se consegue ter tudo isso. Quando eu tinha 16 ou 17 anos, fui à Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa, assistir a uma série de conferências de um dos maiores pintores portugueses do século XX, o Almada Negreiros. Nessas conferências, ele perguntava o porquê da obra de arte, qual o motivo dessa “doença”. Uma das conclusões a que ele chegou é que o homem faz a obra de arte para se eternizar. Quem já viu as pinturas nas rochas feitas pelos homens que viviam nas cavernas sabe que o grande acontecimento da vida deles era matar um animal para comer. Para mostrarem aos filhos e às gerações seguintes como eram fortes, desenhavam nas rochas. Por isso temos as pinturas rupestres, que são geniais. Portanto, como Almada dizia, era uma forma de o homem se eternizar. A História não se repete. As pessoas que vão hoje ver as pinturas em museus, do que aconteceu nessa altura, podem achar as obras detestáveis, por não se identificarem com aquilo. Mas era assim naquela época, era o que estava certo. Se noutras épocas ficou retratado nas rochas ou nos quadros, desta vez também não falha. Estas obras que tenho podem ser boas ou más, mas são a verdade.

– Sente-se reconhecido pelo seu trabalho?
Nunca pensei estar na primeira fila. Há uns anos, o dono da galeria com quem trabalho em Paris disse-me: “Oh Manel, tu conheceste toda a gente, até moraste ao lado do Picasso. Deves ter fotografias fabulosas nas exposições e noutros eventos”. Mas não tenho. Tenho poucas fotografias, pois quando havia inaugurações eu gostava de ficar lá atrás. Não gosto da primeira fila. Mas obrigam-me, empurram-me para a frente… (risos) Esta exposição que está em Reguengos de Monsaraz é uma exposição de obra gravada. Posso chamar-lhe a generosidade do artista. Porque faz o artista isto? Por mais que os pintores trabalhem, por mais que pintem, a obra tem de ser sempre elitista, pois vai sempre para poucas pessoas, não chega a todo o lado. O Picasso referiu, numa entrevista, algo muito interessante: “Se eu sou conhecido no mundo inteiro, não foi com os meus quadros, não foi com as minhas esculturas, mas sim com a minha obra gravada”. É o que tenho aqui. Esta exposição é a apresentação de uma obra democrática, livre para toda a gente. O que é isto da obra gravada? É quando o artista faz uma edição, com um preço muito reduzido. Isto permite que, por exemplo, a porteira de um prédio possa ter uma destas obras. Porque o seu ordenado permite comprar uma coisa destas. Ao longo da vida fiz cerca de 200 edições, sendo que cada edição tem entre 100 e 200 exemplares. Por isso é que é vendido a um preço mais baixo. Mas a técnica que nós empregamos é muito trabalhosa. Depois eu dou nomes sonantes às obras, tais como “Lisboa revisitada” (título do Fernando Pessoa) e outros ligados a poetas ou à música. A maior parte das obras que estão nesta exposição foi vendida para o Japão. Durante cerca de 10 anos, os japoneses me encomendavam muitos trabalhos.

– As obras expostas em Reguengos não apresentam todas um estilo igual…
Todas as pinturas que fazemos são sempre de autorretrato.

– A interpretação da arte pode ser muito objetiva. Alguma vez ficou surpreendido com alguma opinião ou crítica a trabalhos seus?
Cada um é livre, pelo que pode pensar o melhor e o pior. Aceito e respeito as opiniões todas. Nunca me preocupei com a crítica. Evidentemente, fico contente se me vêm dizer que uma revista fez uma crítica muito boa. Mas, se escreverem uma coisa negativa, também lido bem com isso.

– Sente-se melhor em Paris ou em Portugal?
Estou há muitos anos em Paris e, em jeito de brincadeira, dizia que lá é que tinha realmente aprendido a viver em democracia. Mas não posso dizer que me sinta melhor ou pior em qualquer um dos lugares. Eu estou bem onde estou e, quando não estou bem, mudo-me.

– Como é um dia normal de Manuel Cargaleiro?
Levanto-me da cama e, às vezes ainda em pijama, sento-me a pintar. Há pintores, amigos meus (estou a lembrar-me por exemplo do Barceló), que vão trabalhar a partir da meia-noite. Isso, para mim, é algo inusitado. Eu gosto de pintar de manhã porque nessa altura o subconsciente também trabalha. Temos de fazer uma entrega total na vida nas coisas de que gostamos.

– Tem algum trabalho preferido de entre os que fez ao longo da sua carreira?
Eu nunca diria isso! Aconteceu eu fazer determinado trabalho. Estive disponível para fazê-lo. Se a Câmara Municipal de Reguengos me convidasse para fazer um trabalho, iria fazer um estudo, para decidir o que faria de bem para aqui. Como dizia um poeta, “aconteceu poesia”, eu digo que aqui aconteceu pintura.

– Quem são as suas principais influências?
É uma chatice ter de estar sempre a citar o Picasso, mas tenho de fazê-lo. Dizia ele: “todos os pintores têm um pai e uma mãe. O resto é mentira. Podem dizer o que quiserem”. É normal, é higiénico, é bonito que todos os artistas, um dia, descubram que há uma afinidade com uma ou outra corrente. Há pintores que apenas pintam determinadas coisas. É a sua maneira, a sua personalidade, a sua alma. Há artistas de que gosto muitíssimo. Tal como os músicos, que são obcecados pela música, também nós, artistas, apanhamos esta “coisa” de querer conhecer mais e mais sobre as artes. Não se pode nunca dizer que isto tudo sou apenas eu. Por exemplo, na cerâmica, estudei trabalhos do mundo inteiro.

– O que podem os reguenguenses esperar da exposição “A Essência da Cor”?
Esta exposição, para mim, representa muito. Representa a evolução da minha obra ao longo de muitos anos. Quem visitar as salas com as obras, pode ver que há coisas que são muito diferentes de outras. Mas há aqui algo em que eu não falhei: são as minhas cores! É a minha mensagem! É o lado positivo que está aqui. Há também um lado poético que, se as pessoas quiserem, também encontram. Não quero que as pessoas saiam da exposição chateadas e a pensar que este tipo é um malandro. Quem o fizer é uma pessoa mal-intencionada, que recusou ver uma mensagem que diz que estou convosco e gosto de vocês. É para essa mensagem que eu trabalho. Gosto do mundo, quero o bem para todos e quero viver em liberdade e em democracia. ◄

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