No passado dia 2 de setembro, enquadrado nas comemorações do 10º aniversário da Biblioteca Municipal, foi atribuído o nome de António Marcelino ao seu auditório. Foi um momento bonito, e simples, em que marcaram presença muitos dos seus amigos e familiares, bem como pessoas que desinteressadamente entenderam dever juntar-se a esta justa homenagem. Penso ser importante registar que, na placa evocativa da atribuição da consagração que foi descerrada, apenas consta o seu nome, e mais nenhum. Acontece muito correntemente, nos últimos tempos, e em particular em Reguengos, que o nome do “homenageador” parece querer ter mais relevo que o do homenageado. Foi, também por isso, uma belíssima homenagem a quem passou a sua vida profissional ligada às causas públicas como os livros, a biblioteca municipal e aos seus projetos pessoais relacionados com a memória de Reguengos.
A “Alma de Reguengos”, como ele batizou esse seu desígnio, era mais do que a pesquisa e organização de documentos relativos a tudo o que dizia respeito aos momentos importantes da história da terra – os seus mais importantes acontecimentos, realizações, empreendimentos, gente notável, figuras, edifícios, associações, originalidades e particularidades desta terra tão sui-generis. Com este trabalho o Tó pretendia reunir tudo o que conseguisse sobre estas múltiplas informações dispersas que no seu conjunto se constituíam no seu conceito de “Alma de Reguengos”. Não era apenas um somatório de biografias, ou uma monografia de acontecimentos. Era um projeto de memória histórica para a compreensão dos tempos, e para a interpretação das reminiscências coletivas de Reguengos, importantíssimas não só para que se olhe para o passado, mas sobretudo para a perspetivação do futuro. Desse projeto conseguiu terminar algumas partes, mas muitas outras ficaram por concluir. Ficou para registo o seu exemplo e o seu trabalho, pioneiro, do que é um verdadeiro serviço à comunidade.
Aliás, esse seu apego a este tipo de serviço público, estendeu-se também no seu trabalho associativo, nomeadamente com a Sociedade Artística Reguenguense/Secção de Motorismo, de que foi um dos fundadores e o primeiro diretor da então Baja TT; com a Sociedade Filarmónica Harmonia Reguenguense, onde foi diretor; e com o jornal Palavra, de que foi colaborador, e onde foi responsável pelo projeto “Vidas com Valor”, um conjunto de artigos que foram reunidos e publicados em livro, já após a sua morte, e do qual acabou por ser, desafortunadamente, um dos articulados.
Na sua atividade profissional teve também a mesma postura. Nesse âmbito foi grande dinamizador da Biblioteca no Jardim, da Feira do Livro, da organização do “Monsaraz Museu Aberto” e ainda do projeto da nova biblioteca, cuja inauguração já não pode presenciar. Na então biblioteca, que funcionou ali na esquina do edifício do Município, um espaço com pouco mais de 50m2, o Tó Marcelino conseguia ter o espaço organizado por “corredores” para banda desenhada, romances, enciclopédias, livros de interesse local e outras secções. Mantinha ainda uma pequena ”cinemateca”, com vídeos que se podiam requisitar para ver em casa, um espaço para “novidades editoriais”, e um arquivo de leitores, com fichas e cartões de leitor, e um sistema manual de registo dos livros requisitados. Criou também o espaço de leitura de jornais, onde se podia consultar toda a imprensa diária, uma forma muito engenhosa de captar visitantes para a biblioteca.
Um dos seus projetos mais querido era sobre o cinema em Reguengos. Conseguiu reunir um conjunto grande de informação como registos em atas da câmara, noticias de jornais, cartazes, licenças de exploração e outros documentos, com os quais pretendia escrever essa parte da história da “Alma de Reguengos”. Um dos “trabalhos” que me encomendou, que infelizmente não concluí a tempo de lhe entregar em vida, foi fazer a analise de uma memoria descritiva de um projeto de um edifício para cinema, que descrevia toda a construção, e a partir da qual ele queria que eu conseguisse refazer o projeto dos espaços interiores. Não terminei a tarefa, mas ainda voltarei a ela em sua homenagem. Mais uma vez, este trabalho de registo e pesquisa, tinha outro objetivo para além do simples registo monográfico. Era um projeto que muito gostaria de ter realizado: a criação de um cine club com a organização de ciclos de cinema temáticos. Ironicamente, calhou numa altura em que em Reguengos nem sequer passagem de filmes acontecia, apesar de o edifício do cinema ter sido comprado pelo município e de ter sido renovado. É esta a diferença entre o querer e o fazer. Por muito que se gaste dinheiro e se concretizem projetos, se não houver a tal “Alma de Reguengos” que o Tó Marcelino inventou, nada servirá para nada. É também por isso que a memória do cidadão António Augusto da Trindade Bento Marcelino merece estar agora gravada na parede do edifício da Biblioteca, para que esta “alma” nunca morra. ◄
- Publicado no Jornal PALAVRA, edição de setembro 2023
Mais Noticías
Um segredo
Aves
Recuperar a humanidade