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Os pássaros

Maria subia a rua a passos largos, dentes cerrados e o gaiato pela mão. A tarde estava chuvosa e a mulher deu graças a Deus por isso. Por estas horas, em dias de sol, não havia de faltar gente na converseta, e lá teria que dizer boas tardes e sorrir. E sorrir era a última coisa que lhe apetecia agora.
Só queria chegar a casa, fechar-se a sete trancas e repreender o rapaz. Outra vez. Doía-lhe o braço das chineladas diárias, doía-lhe a voz dos castigos prometidos e das ameaças proclamadas e doía-lhe o coração das lágrimas dele.
O rapaz tinha sete anos, quase oito como ele mesmo gostava de apregoar, tinha um espirito livre e uma alma pura como só se consegue nestas idades. Saía cedo para a escola e voltava tarde para casa quase sempre pela mão da mãe rua a cima arrastado e a gemer pelos dedos esmagados.
Encantava-o o voo dos pássaros, desejava com ardor conhecer o mecanismo celeste que os deixava a pairar, a ver o mundo de alto para baixo e sentir o céu nos braços, na cara na pele. Em casa todos os dias era a mesma lengalenga, que não és um pássaro e não tens asas.
Mas a curiosidade não era assim abalada por afirmações triviais. O rapaz queria saber mais. E só por isso, explicara à mãe com paciência redobrada, tivera necessidade de subir à nogueira do quintal da D. Graciela. Tinha a certeza de estar lá um ninho de pintassilgos e tudo o que queria era passar uma tarde descansada no alto da árvore a observar e tirar notas. A mãe abanou a cabeça em desespero – O marido da D. Graciela pintou o muro do quintal ontem, e tu deixaste tudo cheio de lama, e agora sou eu que tenho que ir caiar o muro. O rapaz baixou os olhos constrangido, se ao menos fosse só o muro…
A D. Graciela amanhã pela manhã havia de ir ao galinheiro para recolher os ovos e daria pela desgraça… – mãe ainda há a questão dos ovos. Sabes que a melhor forma de subir a nogueira é ir por dentro do galinheiro, e depois escorreguei e caí dentro da caixa dos ovos da galinha pintada e… ainda lavei as calças com a água do bebedouro mas os ovos…
E a confissão valeu-lhe mais umas quantas chineladas ainda com mais raiva.


O pai do gaiato parava pouco em casa, era caixeiro-viajante e por vezes passava toda a semana fora. Maria guardava para si as façanhas do filho com receio da ira do pai. O homem tinha fama de não ser manso e de ferver em pouca água. Desta forma o Zito, como era tratado com desvelo pela mãe, tinha uns dias santos quando o pai estava por casa.
Maria amava o filho como uma mãe pode amar: sem limites. Na semana passada a desenhar a cegonha que assentara arraiais na torre da igreja acabara por derrubar a mãe do farmacêutico. A velha já nos 90 dava aquela meia dúzia de passos de casa até à matriz, sempre ao sábado para a missa vespertina. E era a única saída semanal. O resto dos dias passava-os à janela de peito, sentada numa cadeira do lado de dentro, a tricotar uma colcha infindável com os dedos cada vez mais deformados e os olhos de águia sempre a rondar a próxima vítima da sua língua afiada. O Zito estava sentado no muro da igreja de caderno e lápis de carvão, a boina com a pala virada para trás e os olhos postos no céu como era seu hábito. Levantou-se num repente porque a mãe cegonha vinha de chegada ao ninho, deu dois passos atras e quando deu por ela a mulher estava de pernas pro ar esticada no chão a gritar “ai quem me acode”.
Veio o filho farmacêutico já com a caixinha de primeiros socorros, veio o Rogério Malino, o bêbedo que passava os dias a correr as tascas da praça da matriz e mais uma porção de senhoras que vinham também para a missa. O Zito ficou ali especado a ver aquilo tudo, sem saber muito bem o que fazer ou dizer, apenas pensando no chinelo que a mãe já nem guardava. A velha no meio do chão gritava impropérios “foi aquele grandessíssimo filho do Demo!” e no meio dos ais apontava para ele sem dó nem piedade. O farmacêutico levou-o para casa pela orelha e empurrou-o para dentro “aqui tem a sua fera Sra. Maria, ontem as janelas do padre e hoje ia matando a minha mãe!”. Maria engoliu em seco, baixou os olhos pediu desculpa e levou o rapaz pra dentro – anda vamos jantar, amanha de manhã falamos. O boticário ainda ouviu as palavras de Maria, e gritou pelo postigo – Jantar!? Deite-lhe palha! E desapareceu enraivecido. Maria cerrou os olhos. O seu menino não era um animal para o alimentar a palha. Era só uma criança. Jantaram calados. A mãe não admitiu uma palavra à mesa, uma explicação, nada, nem um pio. Dormiram e no outro dia o Zito foi para a escola e a Maria foi fazer a visita de cortesia à velhota que encontrou azeda e com um pé engessado. Ouviu o que tinha que ouvir, redobrou o pedido de desculpas e voltou para casa cansada ainda mal tinha começado o dia.
A meio caminho o Prior chamou-a – Maria quando tiveres tempo passa lá em casa que já lá tenho a conta dos vidros. O Zito tinha visto num livro uma armadilha para apanhar pássaros, mas sem os matar. Aquilo metia fio de linho grosso e pedras atadas nas pontas. Ao que parece seria para fazer um laço nas patas do pássaro e conseguir assim ter o animal nas mãos, vivo e ao dispor para a sua observação científica. Tudo muito bem planeado, não fosse o facto de o rapaz não fazer a mais pequena ideia de como lançar a armadilha. Feitas as contas foram 80 escudos que a mãe pagou pelos vidros de duas janelas da casa do Sr. Prior.
A avó Estrudes já pouco saia de casa, a não ser para a consulta e vinha uma ambulância para a levar à vila. Mal via mas ainda assim fazia crochet como ninguém. Sabia do aperto do coração da filha por cauda daquele neto curioso e engenhoso – Os livros, os livros vão-lhe dar cabo da cabeça, o gaiato é muito novo e nunca vi nada de bom que viesse dos livros… Maria não dava resposta, olhava pelo canto do olho para a mesa da sala. Zito tinha dois livros abertos, o caderno e o lápis de carvão por perto também. Os olhos astutos comparavam desenhos, conjeturavam novas formas de observar cada vez mais apaixonado pela ânsia de saber.
Amanhã será outro dia, pensava Maria enquanto provava o jantar que fervia na panela. Outro dia, outro queixume, outra sova de chinelo, outro pedido de desculpa. Logo se vê amanhã. Hoje, agora é só o meu menino a ler um livro e a ser feliz – anda Zito, o jantar está na mesa.
O Zito cresceu sempre a escapulir-se do pai e do que este não sabia. Debaixo da asa da mãe, protegido como as pequenas cegonhas no ninho da torre da matriz, mas sempre a olhar para o céu por entre qualquer nesga de claridade.◄

  • Publicado no Jornal PALAVRA, edição de maio 2021

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