“Que rumo e que rota é que tu segues, ó Ocidente?”. Esta terá sido a mais pertinente questão que o Papa Francisco colocou na sua visita a Portugal às Jornadas Mundiais da Juventude. O acontecimento começou logo com forte polémica. É conhecida a mania das grandezas dos Portugueses ao querer ser o centro das atenções, dando passos maiores do que a curta perna o permite. O custo exorbitante dos palcos fez-nos logo lembrar outro episódio das pompas à Portuguesa – a construção de 10 estádios para o Euro 2004 – que ficarão eternamente por pagar, a maioria deles sem ter qualquer utilidade. Verificou-se mais uma vez o tradicional exagero: para que foram precisos três palcos em espaços diferentes, se tudo se poderia ter feito num único espaço, evitando assim muitos meios e problemas com deslocações, transportes e logística, apenas para satisfazer interesses completamente contrários aos das principais preocupações que o Papa difundiu.
A cobertura mediática do evento foi também o costume: chata e medíocre. Horas seguidas com a mesma tónica da entrevista a pessoas que não tinham nada para dizer a não ser disparates, quando o que não faltava era temática, bastando para isso entender as coisas importantes que o Papa ia dizendo. Só que esses assuntos não eram do interesse nem dos meios de comunicação social, nem dos políticos e muito menos da própria Igreja. Este Papa, já se viu, é uma pessoa especial, sem medo, que aproveita estrategicamente o mediatismo que tem para estar constantemente a dar bicadas naquilo que ele acha importante, mas que não interessa aos poderes instalados. É extraordinariamente lucido, de sólida formação intelectual, politicamente incorreto, até revolucionário, a lembrar, indubitavelmente, os momentos abruptos da vida de Jesus Cristo há mais de 2000 anos.
Logo no seu primeiro discurso, o mais político, feito enquanto chefe de estado, fez, com palavras mansinhas, citando poetas e escritores Portugueses, duras críticas ao modelo económico e social da Europa e do Ocidente, à classe política e mesmo à própria estrutura da Igreja de que é primeira figura. Teve a coragem de apelar à paz, em tempos de guerra e de, frontalmente, questionar a Europa nestes termos: “Para onde navegas, se não ofereces percursos de paz, vias inovadoras para acabar com a guerra na Ucrânia e com tantos conflitos que ensanguentam o mundo? A tua tecnologia, que marcou o progresso e globalizou o mundo, sozinha não basta; e muito menos bastam as armas mais sofisticadas, que não representam investimentos para o futuro, mas empobrecimento do verdadeiro capital humano que é a educação, a saúde, o Estado social. Fica-se preocupado ao ler que, em muitos lugares, se investe mais nas fábricas de armas do que no futuro dos filhos”.
Disfarçou habilmente as suas preocupações citando Camões, Pessoa, Amália, Sophia e até Saramago, um ateu confesso – «o que dá verdadeiro sentido ao encontro é a busca; e é preciso andar muito, para se alcançar o que está perto» – quando o que queria de facto sublinhar era as contradições da sociedade contemporânea ocidental. Referiu-se às “grandes questões globais”, às “injustiças planetárias, às crises climáticas e migratórias”, que “correm mais rapidamente do que a capacidade e, muitas vezes, a vontade de enfrentar tais desafios”. Revelou também estar bem consciente dos problemas ambientais: “estamos a transformar as grandes reservas de vida em lixeiras de plástico”; “A existência humana é chamada a viver de harmonia com um ambiente maior do que nós; este deve ser guardado com cuidado, tendo em conta as gerações mais novas. Como podemos dizer que acreditamos nos jovens, se não lhes dermos um espaço sadio para construir o seu futuro?
Chamou a atenção para a “fase descendente na curva demográfica” na Europa e no Ocidente, e para “as dificuldades que os jovens enfrentam para poderem iniciar e construir um percurso de vida livre e autónomo”. Defendeu uma sociedade em que se aposte na manutenção e alargamento do Estado social, para além do desenvolvimento económico e tecnológico: “Que rota segues, Ocidente? A tua tecnologia, que marcou o progresso e globalizou o mundo, sozinha não basta; e muito menos bastam as armas mais sofisticadas, que não representam investimentos para o futuro, mas empobrecimento do verdadeiro capital humano que é a educação, a saúde, o Estado social.”
Aproveitou cada palavra e cada segundo do seu discurso para lembrar à classe política e aos órgãos de soberania presentes ao mais alto nível, olhos nos olhos, que “a boa política pode fazer muito”, lembrando ainda que devem “hoje, mais do que nunca, corrigir os desequilíbrios económicos dum mercado que produz riquezas, mas não as distribui, empobrecendo de recursos e de certezas os ânimos”. E ainda: “Parece que as injustiças planetárias, as guerras, as crises climáticas e migratórias correm mais rapidamente do que a capacidade e, muitas vezes, a vontade de enfrentar em conjunto tais desafios”.
Era muito bom que os políticos portugueses, e também os europeus, dessem importância e aplicassem os alertas deste discurso do Papa Francisco, e o aplicassem em nome da tão proclamada democracia e da dignidade de todos os seres humanos. Relembrou ainda o caráter multiétnico e multicultural da cidade de Lisboa: “penso, por exemplo, no bairro da Mouraria, onde convivem pessoas provenientes de mais de sessenta países”.
A maioria dos presentes no auditório do CCB, completamente complacentes com estas políticas, aplaudiram com um incomodo patente nos amarelados sorrisos. Grande coragem e desplante revela este homem calmo, sereno, que sabiamente sabe aproveitar a sua enorme popularidade para dizer coisas tão obvias mas tão importantes.
Noutro discurso, relembrou aos jovens as “ilusões do mundo virtual”, “os algoritmos” e “os lobos que se escondem por trás de sorrisos”; “O teu nome aparece nas redes sociais, é processado por algoritmos, mas só serve para pesquisas de mercado”.
Foi ainda por insistência sua que recebeu um grupo de vítimas dos abusos e maus tratos, referindo expressamente a “desilusão causada” e o sofrimento que “sempre se deve escutar”. “Podemos sentir um cansaço no nosso caminho eclesial, acentuado pela desilusão e a aversão que alguns nutrem face à Igreja, devido ao nosso mau testemunho e aos escândalos que desfiguraram o seu rosto e que nos chamam a uma humilde e constante purificação, partindo do grito de sofrimento das vítimas, que sempre se devem acolher e escutar”.
Numa visita à Universidade Católica, foi dada a conhecer uma nova cátedra chamada “Economia de Francisco e Clara”, que nasceu de um encontro em Assis, terra de S. Francisco, cujo nome este Papa escolheu como cognome, onde se iniciou um movimento que defende o fim da economia assente na acumulação e na troca por uma ideia quase anticapitalista, com conceitos como a “ecologia e economia integral”. Aí disse que “abordar os estudos económicos com esta perspetiva é entusiasmante, tendo em vista devolver à economia a dignidade que lhe compete, para que não caia como presa do mercado selvagem e da especulação”. Esta contundente critica ao modelo socioeconómico conservador e neoliberal dos últimos tempos, numa europa onde as referências morais escasseiam, revelam uma coragem e uma provocação aos atuais dirigentes económicos europeus que passam o tempo a fazer justamente o contrário desta filosofia.
A presença de Francisco em Portugal foi assim muito mais do que aquilo que se viu na televisão, com multidões a quererem tirar uma foto a este homem que talvez muito poucos tenham ouvido com atenção, no meio de tanto folclore, de tanta “alegria” e de tanta correria de palco para palco. Felizmente ficam os registos dos seus discursos para contradizer os lugares comuns do dia a dia da vida dos pobres e dos explorados deste mundo moderno. ◄
- Publicado no Jornal PALAVRA, edição de agosto 2023
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