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Recuperar a humanidade

Há dias um aluno dizia-me:
“Professora, precisamos de, de vez em quando, ter formação em humanidade. Não sei em que momento nos perdemos, mas sei que, na escola, no trabalho e na família, estamos vazios de humanidade”.
Esta frase ressoou na minha cabeça.
E realmente, algures no tempo, nos diferentes momentos e circunstâncias da nossa vida, na dobra de uma semana, na viragem de um acontecimento, na continuidade dos dias vamo-nos arrefecendo e convencendo de que somos maquinais, automáticos, impulsivos, frios, desviados dos demais.
É estranhamente comum ouvir as pessoas a dizer: já não acredito em ninguém, já não tenho amigos…
Somos ritmados pela alucinação do imediato, da crítica rápida, da negação de tudo o que vem dos outros, da progressão às custas do prejuízo alheio. Será que estamos à espreita do fracasso, da brecha que ficou por preencher, da falha que dá espaço à incapacidade? Será que estamos mesmo à espera de rir de quem cai, de estreitar a passagem para nem todos entrarem? Será?
Será que nos arrefecemos pela velocidade dos acontecimentos, pela dura rotina das nossas vidas que transformam os dias num cem número de tarefas aceleradas. Será que nos aconchegámos ao isolamento e à possibilidade de vestir e despir fardas que tapam os traços de uma humanidade que parece, às vezes, esgotada?
Talvez não. Na medida em que há pessoas que falam de justiça, há pessoas que trabalham os sonhos dos jovens. Talvez não, na medida em que há pessoas que lutam pela paz. Talvez não, na medida em que há pobres que dividem o pouco que têm e pessoas que curam feridas. Talvez não, porque há pessoas que constroem projetos sem receber nada em troca. Talvez não, porque há pessoas que agradecem todos os dias. Talvez não, porque há pessoas que dão continuidade à arte e não deixam morrer a esperança. Talvez não, porque há pessoas que substituem a crítica, pela construção conjunta. Talvez não, porque há pessoas que não baixam os braços pela alegria dos outros, pela providência de vida nos lugares onde ela mais escasseia. Talvez não, porque há pessoas que procuram o sim em vez do não, o encontro em vez do desencontro. Talvez não, porque há pessoas que procuram no rosto humano, o rosto de Deus.
É preciso recuperar a humanidade por entre os estilhaços da vida, onde a guerra não cessa e a ganância não tem tréguas. É preciso recuperar a certeza de que não estamos vazios da nossa própria essência.◄

Publicado no Jornal PALAVRA, edição outubro 2o23

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