Se uma árvore cair numa floresta sem ninguém perto o suficiente para a ouvir, a árvore fez ou não barulho, e a certeza de que a resposta estará sentada ao lado de soluções para perguntas muito semelhantes – se ninguém me vir a ser feliz, sou ou não feliz? Se ninguém souber que estive em França, será que vi mesmo Notre Dame? Se me esquecer de avisar que o metro está atrasado, houve mesmo algum problema na circulação?
Certo – talvez as respostas para estas perguntas sejam relativamente mais fáceis de encontrar, e não pressuponham grande dedicação filosófica. Mas tendem, sem sombra de dúvida, a fazerem-se de difíceis, pelo simples facto de as perguntas terem de ser feitas. Não são dúvidas recentes, nem inquietações de meses. Em 2010 lançava-se à web a rede social instagram, cujo prefixo sugeria logo a desenfreada partilha de registos fotográficos daquele particular instante, filtrados por uma amálgama de contrastes, temperaturas e saturações (não quisesse a realidade ser demasiado autêntica) – uma câmara instantânea, mas mais do que isso, pois que seria também instantânea a partilha com os demais: sim, estou em Paris, como raios estaria agora a partilhar Notre Dame convosco?!
Mais ou menos uma década depois, a mesma rede social é condenada à morte – afinal a autenticidade é uma coisa que todos desejamos, afinal ninguém quer filtrar a realidade, afinal não tem mal que o céu esteja um pouco mais cinzento, afinal até tem graça a cara do António desfocada, porque ri, afinal este momento, este riso, este olhar direcionado a quem arranca o riso e não a quem o captura, afinal tudo isto, tudo isto: é aquilo que desejamos.
Doze anos depois instalamos sofregamente uma nova aplicação nos telemóveis – BeReal – SêReal. O conceito é giro, admito: a qualquer hora do dia uma notificação surpresa, que pede que estejamos onde estivermos capturemos, sem filtros nem preparações, o momento que estivermos a viver. Nos primeiros dias o entusiasmo precedia qualquer hesitação: a ânsia de mostrar o café da manhã (não o ando a mostrar há mais de dez anos?), a curiosidade de ver o acordar dos amigos próximos. Gradualmente, e como sempre acontece com as suas aplicações pares, a frustração começou a ganhar: a suspeita de os dias serem todos iguais (é verdade – grande parte das minhas manhãs é agonizantemente idêntica às minhas tardes), a confirmação de que outras vidas são mais divertidas (isto não é verdade, e eu sei-o, sabemo-los todos, mas ninguém acredita), a obrigação de, ainda assim, demonstrar que há sempre qualquer coisa a acontecer nesta vida (veem este sorriso? É meu porque sou feliz! E sou-o porque o veem, não é verdade?!).
Isto tudo para vos dizer – ando aborrecida de redes sociais. Ainda não lhes consigo virar a cara, claro que não, mais pelos motivos menos bons do que pelos pontos positivos. Mas ando aborrecida, e isso é um bom princípio (no outro dia, quando saí de casa, estava uma manhã de nevoeiro particularmente atípica para a primavera lisboeta – não a fotografei nem a mostrei a ninguém, e naqueles dez minutos foi só minha, e tenho a certeza de que foi real, e é por isto que sei que o barulho existe algures na floresta quando as árvores caem sem ninguém por perto). ◄
- Publicado no Jornal PALAVRA, edição de maio 2023
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