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Um segredo

Ando há semanas a pensar no conceito de privacidade, a propósito de uma conversa onde não estava a participar e que apanhei a meio, e que agora nem importa para o caso (era sobre um pai que instalou, sem que o filho soubesse, uma aplicação no relógio do garoto para saber sempre por onde ele anda), já que essa privacidade em que ando a pensar é uma outra, mais de dentro, mais da minha agência: as partes do meu todo que voluntariamente desvendo, por exemplo, por oposição ao número de passos que dou, o tipo de conteúdo digital que prefiro, quantas horas passei em frente ao ecrã (ou, no caso de alguns adolescentes, onde conta o relógio que se anda durante o dia).
Tenho dois irmãos e os dois com os olhos azuis (o Zeca vai dizer que são cinzentos e a Eugénia que são verdes – os meus são um castanho genérico), e a minha mãe, sempre muito diplomática, tecia, a cada par, elogios personalizados. Os meus olhos, diz-me ela (à falta de melhor, digo-lhe eu), “são muito expressivos”.
Nunca fui de facto uma pessoa misteriosa, nem capaz de grandes neutralidades. Uma olhada de esguelha e a vizinhança inteira percebe se o dia me correu bem ou mal, e só agora vou começando a valorizar as vantagens de uma existência mais reservada (por exemplo, não passo sete horas diárias a partilhar conteúdo em redes sociais – baby steps!).
E ainda assim, apesar de toda a transparência, digo-me uma pessoa privada quando penso na tal privacidade do meu interior. Todos a temos, claro, aquela que nem mesmo nós visitamos com a frequência merecida (cumprimentamo-la de passagem, e ela recebe-nos de porta entreaberta, já a antecipar que talvez não seja boa hora para conversada), a que nos permite que nos surpreendamos a nós mesmos, que nos assustemos, que vibremos com antecipação… Aquela que é tão intrinsecamente nossa que não queremos que mais ninguém a conheça – e que, por ser nossa, é tão impossivelmente vasta que nos impressiona ver o quanto lá cabe (os sonhos que pensávamos já ter ultrapassado, a nossa verdadeira opinião sobre produtos biológicos, os poemas que nos desarmaram por completo, as feridas abertas que não deixámos cicatrizar – lembram-se, lembram-se?).
É com essa privacidade que ainda nos podemos sentar, um segredo nosso e dela, mesmo quando temos os olhos expressivos e o facebook artilhado de publicações (aqui o passeio por Mafra, ali aquela fatia de bolo careira do café novo da cidade, acolá a cara adorável do cão do primo Manel) – e é nela que penso quando me sinto, eu própria, uma ferida exposta para o mundo inteiro ver, ou um sorriso impossível de esconder depois de receber as melhores notícias do mundo. É com ela que faço questão de passar mais tempo, neste mundo em que nada é só nosso.
É nela, pois, que me refugio, e com ela, também, que tenho descoberto o perigo de a querer proteger em demasia: pois que num mundo que cada vez mais puxa de nós os segredos que não lhe pertencem, muitas vezes deixamos de ser capazes de nos permitir à vulnerabilidade de a partilhar.
Ando há semanas a pensar nessa privacidade interior, e não desejo coisa mais simples: mantê-la minha, sim, mas poder visitá-la, sempre que esteja capaz, com companhia. Para que seja eu, e ela, um segredo só nosso, a decidir que segredos contar aos convidados. Nada de passos dados ou horas de ecrã, mas antes o que sinto sobre cenouras mirradinhas ou sobre as palavras da Audre Lorde (Always/ in the middle/ of our bloodiest battles/ you lay down your arms/ like flowering mines/ to conqueror me home). ◄

Publicado no Jornal PALAVRA, edição de outubro 2023

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