– Deixa-te de choradeiras que isto a vida são dois dias. Andar a carpir pelos cantos não vai adiantar de nada, raparigas há muitas, juízo é que parece-me a mim há poucochinho.
Era assim que a avó tratava as mágoas da vida. Descaso e mão na anca, uma simplicidade desconcertante e um tom de porta fechada. Com a frase – a saúde que não nos falte – encerrava a conversa e eliminava qualquer possibilidade de resposta.
Como se de um penso rápido se tratasse – vá está desinfetado e tapado, vai à tua vida – e ir à nossa vida significava inevitavelmente seguir em frente e não olhar paras trás.
A avó tinha sido forjada em perdas atrozes. Primeiro o marido, mancebo de 20 anos a caminho das colónias para uma guerra que nunca foi sua e que por lá ficou eternamente. Para a terrinha mandaram um caixão de pinho, ao que conta o povo, cheio de pedras, que o corpo nem vê-lo. Quando recebeu a notícia tinha a filha mais velha ainda de fraldas e o mais novo numa redonda barriga de quase nove meses. O rapaz partiu para as colónias cheio de medo de não voltar para conhecer a filha, e o tempo fugaz deu-lhe razão. Não resistiu 6 meses abaixo do equador. A rapariga cerrou os dentes, apertou a mão da filha e fez-se à vida. Depois o filho mais novo, fraco desde o dia em que nasceu, não resistiu a uma infância de provações e estadias infinitas em hospitais. Tinha pouco mãos de dez anos e deixou um buraco no colo da rapariga.
Casou em segundas núpcias com um homem mais velho, prometeu-lhe cuidar da filha, dar-lhe um teto e pôr a miudinha numa escola para aprender a ler e escrever, pois começava a ser tarde para isso. As promessas revelaram-se furadas e em pouco tempo mãe e filha trabalhavam de sol a sol nos campos. A vida do campo dizia o homem, não tem fim, a uva, o trigo, a azeitona, os animais, e a escola da miúda não valia a pena. -Um dia destes aparece por aí um patife e ela vai-se embora com ele, pra isso não precisa ler nem escrever.
A avó, que era jovem então, cerrou os dentes como era seu uso e sempre com a filha debaixo da asa, não desarmava e trabalhava como um condenado. Um dia o homem seu marido, numa troca de palavras sobre a inutilidade da rapariguita para o que quer que fosse, o homem dizia, levantou a mão e desfechou uma bofetada na miúda.
A mãe, pôs-se de pé com tal urgência que a cadeira onde estava sentada caiu com estrondo. Agarrou a rapariga pelo braço, e antes que o homem pudesse dizer ou fazer qualquer coisa, apontou-lhe uma faca, olhou-o nos olhos e sem uma palavra saiu daquela casa para n nunca mais voltar.
Regressou para a casa humilde do primeiro casamento. Foi oferecer-se para trabalhar a dias em casas de famílias, e em menos de um ano pôs a rapariga numa escola para adultos.
A rapariga não era parva e enquanto o diabo esfregou um olho aprendeu a ler e a escrever e com 15 anos fez o exame da quarta classe.
Dois anos mais tarde a rapariga encantou-se por um rapaz de uma aldeia vizinha e despediu-se da mãe rumo a um sonho de amor para toda a vida.
A avó, ainda jovem e apenas mãe, viu-se cheia de solidão. Bateu-lhe à porta um amor novo. Também ele moldado pela vida dura. Estava tão só quanto ela, encontraram-se e estacaram um no outro todas as mágoas.
Trouxeram ao mundo mais dois filhos, e muitos anos mais tarde, foi outra vez a avó que se despediu do seu homem.
Não admira que as dores à sua volta fossem tão relativizadas por ela. Como se nos protegesse de males maiores. Como se fizesse só sua a tarefa da nossa felicidade.
Mas o amor doía…e a Maria tinha partido com outro, sem aviso. Deixou-me um vazio fora de mim que me assombra a cada dia que passa e cresce de tal forma que à milha volta não há mais luz.
A avó varreu toda a tristeza para dentro dos buracos fundos que cada dor lhe cavou na alma. Por isso dá por terminado qualquer assunto que em seu redor possa trazer mais pesar. Porque nela não cabe mais dor.
A Maria foi-se embora. Não temas avó. Vou à minha vida. Tenho muito para guardar no vazio que me acompanha.◄

 

  • Publicado em PALAVRA novembro 2020

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