Hum Dr… a casa não é lá essas coisas. É bonita sim, e terá o seu significado para gente que aprecie velharias. Mas atente neste pavimento! Já ninguém usa estes mosaicos espampanantes. Imagine o dinheirão que é preciso para arrancar isto tudo e colocar aqui um belo soalho flutuante de madeira envernizada, um acabamento de classe. E estes tetos? Demasiado “rococós” para o gosto de um casalinho novo – isto parece um palácio, mas um palácio decadente – o homenzinho pequeno de olhos semicerrados varria a casa toda com os olhos escrutinantes, e um sorriso de escárnio no canto do lábio, previsível, daqui a pouco lançaria a cartada do prédio de apartamentos – Ouça amigo, isto para ter algum lucro era aproveitar o terreno. Um terreno valioso, mesmo no centro nevrálgico da nossa vila. Uma vila promissora Dr.! – sublinhou de dedo do ar quase a roçar-me o nariz – era mandar esta carcaça abaixo e fazer crescer aqui um belo prédio de apartamentos! Neste espaço consegue à vontade meia dúzia de casas espaçosas, ou dez mais pequenas – a este ponto e de modo a evitar reações mais “espaçosas” deixei de o ouvir, opção minha claro, até porque a voz redonda ecoava perfeitamente pela casa vazia.
Estendi-lhe a mão.
– Obrigado Sr. Ferreira. Não há pressa. Tenho tempo para pensar bem na minha decisão. Mas fico grato pelas ideias. – apertei-lhe com firmeza a mão suada e mole e mostrei-lhe o caminho de saída.
Por hoje chegava de idiotices. Se o arrependimento tivesse vontade própria estaria morto, fulminado pela minha estupidez por ter trazido aquela ave de rapina de terceira para dentro da minha casa.
Caramba, usei mesmo a palavra “minha”. Saí daqui tão cedo, de costas voltadas para tudo e arrastei a casa comigo.
É preferível deixar a porta fechada à chave e o portão também.
O hall de entrada parece mais pequeno agora. A casa está vazia seria de esperar o contrário. Deve ser esta tristeza inerente à solidão. O banco de madeira de carvalho outrora sempre encerado, estava no mesmo lugar de sempre, embaciado e imerso em pó. Anos e anos de esquecimento. Era o patamar de entrada e de saída da casa. A correria na ida matinal para a escola, a ansiedade na chegada para o lanche acompanhada invariavelmente pelo abandono das mochilas escolares no banco. As mochilas que apareciam mais tarde imaculadas na sala de estudo. A mãe e a Luísa, a governanta, eram as formigas por detrás das nossas cortinas.
Quantos joelhos esfolados nas escadas de granito da entrada.
Depois do hall abria-se uma porta dupla para a sala de acesso aos quartos, o quarto dos pais ainda com a mobília de duas camas, o meu pai detestava dormir acompanhado, os lençóis brancos soterrados em pó a cobrir tudo, dão-lhe um ar quase romântico.
Exatamente em frente a porta do nosso quarto. As duas camas desertas, nuas. Os posters de músicos e desportistas a descolar das paredes amareladas. Aqui jaz a minha vida pensei. E não me ocorreu pensar em vida passada. Aqui jaz toda a minha vida.
Fecho a porta devagar não vá incomodar o eterno descanso das minhas memórias.
A sala de estudo ainda cheira a livros e pó de giz, e aparas de lápis de carvão e folhas de papel amarrotadas das batalhas travadas enquanto a Menina Madalena tomava chá com a mãe.
Respiro fundo, abraço o cheiro vivido da divisão. Ainda ontem estava sentado numa cadeira, a ouvir as palavras sábias da Menina Madalena, a explicadora que vinha a casa três tardes todas as semanas, e a disputar guerras de caneladas com o meu irmão.
Ao lado o oratório da mãe. Uma sala pequena, sempre na penumbra de velas e sombras, o altar a Nossa senhora e o dois genuflexórios almofadados a veludo carmim.
Todos os sábados antes do jantar era hora de orar em família. Os pais em frente ao altar e nós ajoelhados em duas almofadas pequenas, guardadas para o efeito. Nunca gostei da escuridão deste lugar, e nem o semblante calmo da virgem evitava o arrepio na espinha sempre que ali entrava. Não gosto de lugares escuros, era uma confissão e estava a fazê-la em alta voz. Não me importo de ser só, mas prefiro que seja com luz.
A cozinha mantém a mesa de tampo de mármore no centro, o fogão de seis bicos a gás na parede lateral, e a janela de portadas para o jardim, cuja luz banhava o espaço de manhã à tarde, e assim se mantinha e deixava à vista a desolação de uma cozinha mais que deserta, abandonada. Esta, de todas é a divisão que mais memórias me trás. Se fechar os olhos posso sem esforço sentir o coração deste lugar, o entra e sai dos dias que antecediam o Natal, o cheiro a fritos, canela e açúcar, a experiência científica e cirúrgica da preparação do peru, que a Luísa levava a cabo com mestria perante a nossa perplexidade e espanto; a preparação dos aniversários, os bolos decorados com creme de manteiga batida com uma colher de pau pela força de mãos e braços da Luísa. Era uma mulher calorosa, grande e com um coração enorme. A cozinha traz-me os abraços dela, o sítio mais seguro da casa. Lembro-me bem de como por alturas de Janeiro quando o gelo dói no corpo, depositavam um porco esventrado em cima da mesa de mármore, e mais uma vez as suas habilidades de cirurgiã eram postas à prova.
A sala de jantar, mesmo assim, sem vivalma, mas com a mobília séria, tem uma atmosfera formal. O pai era exigente, à mesa não se brinca, não se fala e ninguém se levanta antes de terminar a refeição. Senti-me encolher só de olhar esta sala. Fiquei mais pequeno. Fechei a porta devagar evitando enfurecer a alma deste lugar.
A sala de estar permanece fechada à chave. Tem lá todos os livros do pai e da mãe, os sofás de couro estão a envelhecer como um bom vinho debaixo dos lençóis e o rádio está ainda com a ficha ligada à eletricidade. Escolho não abrir. É melhor não mexer na carícia da calmaria. Deve cheirar ainda ao cachimbo, chocolate preto e whiskey de malte, o preferido do pai. E de certeza que o perfume de jasmim que a mãe adorava está ainda cravado no seu cadeirão.
Fecho as portas atras de mim e saio para o jardim, A natureza tomou conta de tudo de uma forma descontrolada, ao lado das laranjeiras cresceram ervas e flores do campo, viçosas e cheias de força. Se bem me lembro foi ali debaixo da palmeira gigante agora a agonizar ao abandono, que fumei o meu primeiro cigarro, roubado da caixa de prata da mãe. Quem havia de saber que ela os tinha contados. Soubemos à noite com a força do chinelo.
Foi ali também que dei o meu primeiro beijo. A Ana Maria, o que será feito dela. Era bonita, pequena e bem mais atrevida que eu. Tomou a iniciativa ao puxar-me pelo colarinho da camisa e fez de mim o rapaz mais feliz do mundo.
Fecho o portão de ferro. demoro a minha mão na chave, a testa encostada à tinta verde a descascar.
Não sei se fico, se vou. Não sei nada a não ser que estou para sempre dentro das paredes desta casa. Pode-se lá vender o coração.◄

 

*Publicado na edição impressa em outubro 2020

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