Faltava pouco tempo para o dia nascer. Para ser mais explícita, mas não em demasia, faltavam precisamente 34 minutos. De acordo com o site https://www.sunrise-and-sunset.com/pt, o sol nasceria às 6:12h e o dia teria um comprimento de 14 horas e 43 minutos.
Tinha sido uma noite produtiva de trabalho. Estava cansada, tinha uma sensação de ardor nos olhos, por estar demasiadas horas sentada na mesma posição doíam-me as costas e os pés estavam edemaciados, mas sentia-me satisfeita. O plano de trabalho tinha sido cumprido na íntegra e a redação do parecer estava concluída. O que tinha escrito não era agradável nem tão pouco simpático e algumas das expressões avaliativas eram um pouco duras, reconheço, embora todas elas devidamente fundamentadas.
Reposicionei-me na cadeira e fiz uma última leitura, tentando manter o discernimento e a tolerância que a falta de dormir me retirara. Tinha que ser justa, mas sem ferir, e por vezes as palavras são tão acutilantes, que provocam lesões profundas capazes de inibir qualquer tentativa de recomeço.
O que escrevi como parecer, iria determinar, pelo menos naquele semestre, o percurso académico daquela pessoa. Fiquei desconfortável e pensei nas implicações – mais propinas, um objetivo adiado, mais investimento pessoal e familiar, o confronto com um insucesso e uma autoestima magoada.
O meu desconforto aumentou, e quase por magia, o cansaço dissipou-se como se tivesse dormido 8 horas de um sono repousante. Revi o texto e recolori algumas expressões tornando-as mais suaves, mas o sabor amargo mantinha-se, porque os ingredientes de avaliação eram os mesmos. Não consegui fazer diferente porque não podia, tinha que ser justa e orientar-me pelos indicadores definidos. Então, abri o endereço eletrónico e de forma perfeitamente consciente e assumida, decidi enviar o e-mail com o parecer final. Não fiquei mais aliviada e podendo parecer disparatado, sentia sobre mim uma responsabilidade enorme, que advinha da minha tomada de decisão.
Decidir tem custos. Expressão de poder e/ou exercício de liberdade resultante de função, o ato de decidir e o resultado dessa decisão, tem sempre consequências individuais e/ou coletivas.
Não há decisões neutras porque decidir implica escolher, e a escolha, implica a preferência de uma coisa em detrimento de outra. Mesmo quando faço uso da abstenção, decido que os outros podem decidir por mim, e também isto é uma decisão.
No meio deste emaranhado de pensamentos, não consegui distanciar-me dos tempos estranhos que vivemos, e pensei nos decisores. Aqueles que estão no topo de uma qualquer hierarquia, a qual por sua vez sujeita a hierarquias mais herméticas, e que diariamente têm que tomar decisões. Decisões simples, complexas, questionáveis, controversas e até difíceis de compreender, principalmente quando interferem com as nossas zonas de conforto e aquilo que consideramos ser os nossos direitos, e que por sua vez envolvem mudanças de comportamentos.
Decisores com protagonismo e evidência mediática, que se expõem à crítica porque as circunstâncias o exigem, mas que decidem. Decidem bem, mal, assim-assim, tardiamente, no momento certo, por conhecimento ou insciência, dependendo a expressão utilizada do posicionamento político e afetivo de quem se quer manter como simples observador, procurando não se envolver nas decisões tomadas porque não lhe dizem respeito.
Mas esta posição é falaciosa, porque na verdade, todos nós somos decisores e o argumento de que só alguns têm esse direito e esse dever, é perfeitamente descabido e o seu uso aproxima-se da ignorância. O nosso quotidiano, independentemente da idade que temos, é pejado de decisões contínuas, múltiplas, muitas delas quase inconscientes. A que horas me levanto? Que roupa visto? O que faço para o almoço? Tomo café? Uso máscara de proteção? Mantenho a distância pessoal? Desinfeto as mãos? Organizo festas para 50 amigos? Critico tudo e todos? Deito lixo para o chão? Qual é a minha decisão?
Quando no bairro da minha mãe, alguém decide não tocar na tampa do contentor do lixo e deita os sacos para o chão, toma a decisão de ignorar todas as regras de sanidade comunitária, mostrando um total desrespeito pelo outro. E como todas as decisões têm consequências, no dia seguinte, provavelmente pela manhã, haverá alguém que toma a decisão de meter as mãos no chão e apanhar a porcaria (palavra educada que uso, para refrear o impropério que me apetecia dizer) feita no dia anterior por alguém, que decidiu deixar para os outros a tarefa que lhe competia.
Bem sei que somos humanos e essa nobre e fantástica caraterística torna-nos imperfeitos. Mas decidir que o outro fará as coisas por mim, é a desresponsabilização total e a negação absoluta de civismo.
Agora mais do que nunca, porque o tempo é de risco e a incerteza teima em ficar, tenho a oportunidade de decidir se quero ser parte do problema ou parte da solução, porque quando chega o momento, a decisão é sempre minha. ◄

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