A seguir à “Volta à França em Bicicleta”, de que falámos no mês passado para salientar a qualidade visível do planeamento urbanístico e do território percorrido pelas etapas diárias, segue-se a “Volta a Portugal”. Infelizmente é em tudo o contrário do que descrevemos anteriormente. Numa tentativa de imitar a transmissão, a RTP faz um arremedo, muito mal feito, sem chegar nem de perto à qualidade da transmissão da TV Francesa. As circunstâncias desportivas da etapa diária não são claras e não conseguem relatar o que se passa relativamente à competição, aos grupos de corredores em fuga, atrasados ou no pelotão. Não existem referencias a tempos nem às classificações virtuais, nem aos corredores em foco. Mas, muito pior que a falta de dados sobre a corrida e os seus intervenientes, o que nos entristece mesmo é a pobreza das imagens do território atravessado. Se no caso da volta à frança é notório que há um cuidado em escolher os pontos de vista e um interesse claro em aproveitar o evento desportivo para fazer a divulgação dos territórios com imagens fantásticas quer da paisagem quer dos monumentos e do património construído com referencias constantes a cada um deles, no caso da nossa volta o que salta de imediato à vista é o completo desinteresse por esses temas. Parece até que fizeram um esforço para escolher sítios medonhos, feios, desordenados e caóticos do ponto de vista paisagístico, patrimonial e urbanístico. Não é, no entanto, o caso. Simplesmente, França é um pais bem ordenado e cuidado e Portugal é um desespero de desordenamento, de falta de cuidado e de desleixo em tudo o que diz respeito à construção, ao património, à paisagem, ao urbanismo, à arquitetura e ao património. Não é novidade e cada vez aparecem mais problemas a acrescentar aos existentes. Atualmente, e como já referimos aqui variadíssimas vezes, um dos principais problemas é o completo desprezo e negligência no que respeita à implementação das novas culturas intensivas e super-intensivas que diariamente vão destruindo o pouco que resta do património arqueológico espalhado pelos campos, com noticias quase diárias de novas destruições sem que ninguém consiga forma de as impedir.
Voltando às imagens da competição ciclística, o que é notório e permanente nas imagens de norte a sul do País é a falta de qualidade do ordenamento dos campos e das áreas construídas, bem como a deficiência da intervenção humana desregrada, sem qualquer respeito pela natureza e pela construção da paisagem. As estradas usadas são uma miséria de conservação, esburacadas, sem arvores, com as bermas destruídas, sujas, sem nenhum tratamento ou conservação, com desníveis nos pavimentos e por isso perigosíssimas para todos os que as utilizam. Por outro lado, a quantidade insuportável de rotundas e nós desnecessários e inestéticos, a maior parte das vezes feitos claramente para servir bairros e construções clandestinos, mal localizados ou construídos apenas para servir algum interesse pessoal, tornam a circulação caótica e difícil de compreender. A maioria das estradas não é uma normal ligação entre duas povoações, mas um continuo construtivo sem nenhuma regra. Aliás, as povoações não são delimitadas por nada, espalham-se aleatoriamente numa desorganização sem limites. Por todas as estradas se alinham oportunisticamente lojas de materiais de construção e de jardim, standes de automóveis, parques de aluguer de gruas, casas de madeira, anúncios gigantes, tudo situações que tiram a atenção aos automobilistas. Depois há quem ache estranha a quantidade inusitada de acidentes rodoviários por distração. Esta situação, que resulta da enorme falta de planeamento, ou da negligencia na aplicação das leis existentes, é comum em Portugal, mas não existe nos países desenvolvidos.
Por todo o lado são visíveis ruínas, casas abandonadas e mal conservadas, ao serviço da especulação imobiliária, aguardando a valorização dos terrenos ou as alterações de uso que façam aumentar o seu valor. Esta é uma prática típica dos países subdesenvolvidos, sem planeamento, e nas mãos de especuladores, porque em países desenvolvidos e organizados as leis são feitas para defender o interesse publico e não o interesse privado.
Visível também é a falta de qualidade da maior parte das restantes construções. Como é sabido, Portugal disparou no que respeita à construção civil nos últimos 50 anos, com o apoio da banca que aí viu um manancial de lucro. O resultado foi uma incomensurável falta de qualidade construtiva, com enormes deficiências ao nível das estruturas, dos materiais de acabamentos e sobretudo nas questões térmicas. Estas últimas resultam em condições degradantes de habitabilidade, com calor no verão e frio insuportável no inverno, que obrigam os residentes e utentes a recorrer a aparelhos altamente consumidores de energia e sem nenhuma eficácia térmica. A produção artificial de calor ou de frio perde-se pelas portas e janelas e pela falta de isolamento das paredes, da estrutura, das coberturas e dos pavimentos.
Relativamente a culturas agrícolas, o mais comum nas imagens são campos abandonados, estufas, eucaliptos, matagais, e uma falta de conservação e de manutenção gritantes. Não há vegetação de compartimentação, não são visíveis efeitos da manutenção da vegetação nas linhas de água nem quaisquer bolsas de mato para defesa de espécies animais, sejam aves, caça ou outras, nem nenhum tipo de galerias vegetais de arvores ou arbustos. O que abundam também são vastas áreas de monoculturas sem qualquer compartimentação. Esta balbúrdia inestética é demonstrativa do uso incorreto dos solos que deveria acontecer se se respeitassem as regras das Reservas Ecológica e Agrícola Nacionais. Portugal tem desde os anos 80 estas duas leis importantíssimas, implementadas quando o Arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles foi Ministro de Estado e da Qualidade de Vida, que regulam o regime do uso da terra e o ordenamento do território, criando as bases para a implementação dos Planos Diretores Municipais. Desde aí, sucessivos governos, e sobretudo as autarquias, têm feito tudo para destruir os efeitos destas leis, com grande sucesso, visível no estado caótico que as imagens em causa bem documentam.◄