A notícia com que me deparei no passado 29 de Setembro foi a de que o PS havia recuado aceitando que a residência alternada dos filhos de pais separados seja opção, e não regra. Notícia do Público. A residência alternada, a ser uma regra, obrigaria a que se tentasse evitar que um dos pais se divorcie dos seus filhos, ou que essa fosse pelo menos a última opção e não a primeira, ainda que no final de contas a decisão dependesse mais de um acordo mútuo familiar (residência alternada já negociada) do que na decisão do tribunal. A questão crucial aqui, e como comentou o Daniel Oliveira no Expresso, é que a lei da residência alternada, só era fundamental porque a generalidade dos tribunais parte do principio que um filho fica na residência de um dos pais – geralmente a mãe.
Desde uma perspetiva feminista (aliás, onde estamos nós agora a gritar e a reivindicar?) isto deve, tem que ser reivindicado. Uma das coisas que aprendemos em antropologia, filosofia, sociologia, ciências sociais em geral, e eu a puxar a sardinha à minha brasa, é que, a forma como as necessidades são atendidas e entendidas são também formas de luta. No entanto, antes que as reivindicações sejam feitas por grupos, as necessidades devem ser vistas como esferas legítimas de intervenção política – a luta. O surgimento de estas mesmas necessidades como questões políticas desnaturaliza-as. Isto é, quando as necessidades são nomeadas e reivindicadas à escala política, isso torna-as visíveis e tira-as daquelas áreas da vida social que são tidas como ‘naturais’. Isto tem particularmente relevância para atividades de cuidado que tradicionalmente têm sido vistas como um dever natural ligados a ser esposa, mãe ou filha. Desde o século 20 que campanhas feministas têm reivindicado sobre o ‘cuidado’, ou melhor dizendo, a noção igualitária de ‘cuidado’: reconhecimento das ‘diferenças’ entre homem e mulher sobre as responsabilidades de cuidado a nível doméstico; o reconhecimento do trabalho não remunerado das mulheres (Aconteceu na Grã-Bretanha logo após à Primeira Guerra Mundial), a fim de diminuir a sua dependência do homens e, assim, aumentar as chances de igualdade de remuneração no mercado de trabalho. Estas campanhas foram principalmente acerca da evolução da mulher enquanto cidadã e trabalhadora. No entanto, em 1930, começaram a aparecer campanhas pelo abono de família afim de haver melhores condições financeiras para o papel doméstico da mulher, numa altura em que o estado de bem-estar se baseava na ideia de que o homem seria responsável por trabalhar e ganhar dinheiro enquanto a mulher seria a cuidadora dependente do salário do seu marido. Em contraste, no mesmo ano, mas na Suécia, as mulheres reclamavam por, entre outras coisas, direito à maternidade, suporte de renda para mães solteiras e cuidados de saúde materna, o que modificou o papel do homem como ganha-pão da família.
Ora, em Portugal, um país com um passado extremamente machista e conservador, a residência alternada é um salto civilizacional pelo qual lutaram gerações de feministas. A partilha põe em causa o estereótipo da mãe cuidadora e do pai que garante sustento, mesmo quando estão separados, criando condições favoráveis para que a mulher tenha uma carreira profissional em igualdade de circunstâncias. Passando esta residência alternada a ser opcional e não obrigatória correremos o risco de que seja assumido desde princípio de que, por natureza, a mãe seja responsável pelo cuidado e educação da criança.
Pessoalmente, fiquei desiludida pelo papel do feminismo político não ter sido mais ativo. Por vezes, arrisco a dizer, o problema da democracia é que todos podem escolher. Melhor tomar uma posição do que ficarmos no nada. ◄

 

  • Publicado na versão impressa de outubro 2020

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