O mês de agosto corria de feição. Férias, dias quentes e as chamadas noites tropicais em que não bulia um sopro.
À noite o jardim da vila era o local de eleição dos mais jovens, que em grupinhos se sentavam na relva fresca pela rega da tarde, a cantar, a contar anedotas, a ouvir música e os mais afoitos a namorar. De vez em quando passava um casal de meia idade, já com os filhos criados, a passear de mãos dadas, a comer um gelado a aproveitar a trégua da noite. Era nessa altura que os casalinhos de namorados dissimulados viravam a cara para longe da luz, afastavam as mãos ou deixavam o cabelo comprido cobrir a sua identidade.
O rádio de pilhas, passava essencialmente o programa de discos pedidos àquela hora da noite, e na sua maioria eram canções populares, ou fados, nada que alimentasse os espíritos ávidos juvenis. Vinham com os leitores de cassetes, com gravações caseiras de êxitos dos tops e grandes sucessos da cena pop/rock.
A Leninha era uma das mais entusiastas. Sempre na crista da onda, o cabelo tingido de amarelo, rapado à altura das orelhas e uma enorme crista de moicano que caia com falsa displicência sobre os olhos. Um visual muito à frente, diziam as pessoas. Trazia sempre música, adorava apresentar aos amigos sons novos, artistas novos, de preferência extravagantes e estridentes. Era uma animação na grupeta, falava pelos cotovelos e conhecia de cor e salteado todas as bandas iam surgindo no panorama musical. Sonhava ter ela própria uma banda, um dia quando finalmente conseguisse fugir da “parvalheira” como gostava de chamar à vila.
O Rui Grande, principal mentor da parte masculina do grupo, era mais calado. Gostava de dançar, e era dos poucos que se gabava de ter tido intimidades com raparigas. Usava sempre camisolas justas à moda, calças à boca de sino e sapatilhas de pano. Tinha quase dois metros e era de poucas palavras. Mas quando ele falava todos os ouviam. Namorava a Rita e só tinha olhos para ela. Para ela e para os seus sonhos. Queria ser médico, ir pra África, romper convenções, desafiar a ordem política e levar a Rita de farta cabeleira ruiva consigo.
A Luísa e o Manel eram irmãos, dois anos de diferença, a rapariga, mais velha, era obrigada a carregar com o irmão por imposição dos pais. Dava-lhe pouca atenção, era a rainha da festa, miúda destemida, bonita como só ela, sempre vestida para seduzir. Vestidos curtos, botas até ao joelho, fizesse frio ou calor, os cabelos loiros escorridos até meio das costas, os olhos verdes e uma maquilhagem impecável. Se a Luísa estivesse, o grupo era sempre maior. Adorava falar e acima de tudo ser ouvida, era rapariga de ideais bem definidos e fazia de tudo para levar os outros no seu encalço.
O Manel ficava sozinho. Era mais novo e não tinha nem de longe nem de perto a áurea da irmã. Rapazote tímido, sempre na sombra. Prometia aos pais olhar pela irmã, assegurar-se de que ela estava em boas companhias e se portava como uma rapariga de bem se devia portar.
Nunca entendera o que queriam dizer aquelas palavras e não tinha grande vocação para guardião de virtudes alheias. A Irmã deixava-o fumar, e ele se fosse preciso ficava no banco do jardim por baixo do candeeiro a ler mais um pouco daquele livro sobre novas tecnologias que o apaixonava, e perdia-a de vista sem problemas.
As novas tecnologias haveriam de mudar o mundo. Não era a guerra, ou os ideais políticos, não eram os discursos da irmã e do Martinho, o comunista do grupo. Eram os computadores que haveriam de ditar o final do século XX. Manel devorava literatura sobre tecnologia, banda desenhada com motivos futuristas, notícias de jornal que revelavam avanços épicos e passos de gigante. O futuro estava já ali e ele ansiava por ele e queria ser parte deste novo mundo que as últimas décadas do seculo anunciavam. Era fácil de ver que a juntar ao facto de ser mais novo, esta fixação sobre ficção científica e desenvolvimento tecnológico não geravam grandes simpatias no grupo de jovens inflamado pelas mudanças sociais que se adivinhavam.
A Rosa Maria namorava o Leonel, tinham os mesmos dezassete anos qua a maior parte dos outros, mas uma perspetiva de vida diferente. Os outros falavam de voar, ir para a cidade grande, ou até mesmo para o estrangeiro, a maior parte queria ir para a universidade, as raparigas tinham cada vez mais força e estímulo e os rapazes, mesmo os de famílias mais modestas, sonhavam com uma carreira académica. O mundo estava a mudar, e era tão depressa que se podia ouvir a velocidade com que ocorria cada uma dessas novidades. A Rosa Maria e o Leonel queriam casar. Punham um sorriso de gozo e um revirar de olhos em cada um dos colegas. Os outros queriam mudar o planeta, eles queriam viver para sempre naquele lugar. Comprar uma casa, casar, ter filhos. Um sonho sossegado, sem rasgos de heroicidade.
Eram revolucionários em causa própria, lutavam de mãos dadas. Não lhes causava mossa o desprezo dos outros, até podiam ouvir as mesmas canções à noite no jardim, partilhar um pedaço de chão, mas jamais seriam comunidade.
Um dia não muito longe dali todos haveriam de ter a sua luz da ribalta, todos seriam heróis em causa própria ou não, todos teriam vitórias e muito por sua conta também teriam derrotas, um dia não muito longe dali todos eles veriam o mundo transformar-se e aprenderiam que nem sempre agosto correria de feição.◄