A democracia começa em cada um a partir da liberdade interior e da reflexão que é ou não capaz de fazer e do espaço que permite a si mesmo para acreditar na informação que lhe chega de todas as direções e, ainda, do espaço que deixa aos outros para escolherem, de acordo com as suas próprias capacidades, o que entendem por melhor.
A democracia também se constrói a partir dos representantes do povo, legitimamente eleitos por sufrágio universal. Estes, constroem a democracia privilegiando a liberdade dos cidadãos. São os garantes dos direitos de todos e os guardiões da liberdade de cada um. Fazem-no através de decretos, despachos e normativas que são lei.
A democracia, surge como uma forma política de organização das sociedades, no que ao exercício do poder diz respeito, frente ao totalitarismo, à ditadura e opressão, que sistemas políticos como a monarquia e a república conhecem. A república, só por si, não garante nem liberdade nem democracia. Há regimes monárquicos mais democratas que regimes republicanos. Democracia é o oposto de ditadura e não de monarquia.
A democracia começa em cada um a partir do momento que se reconhece como membro de uma comunidade. É na relação com os demais membros da sociedade que pode agir de forma democrática ou não.
O grande erro das democracias e dos cidadãos que vivem segundo este regime é julgarem que o facto de se nascer em democracia é garantia de que se conhecem as normas, critérios e valores pelas quais se regem os seus concidadãos e sabem agir de acordo com eles.
Ora, tudo no ser humano requer aprendizagem, autodomínio, renúncia, respeito e responsabilidade. Qualquer destes elementos exige tempo, trabalho, dedicação, esforço, repetição e vontade.
Também os políticos precisam deste tempo de aprendizagem. Um político, em democracia, não pode ser apenas alguém que foi eleito pelo povo. Tem de ser alguém que se formou a si mesmo, com a ajuda de outros, pais, professores, cidadãos em geral, através de trabalho, esforço, renúncia, numa verdadeira aprendizagem do respeito pelo outro e da responsabilidade perante todos e em todas as circunstâncias. Ou seja, o político em democracia, há de ser um cidadão exemplar, bem formado como pessoa e consciente dos seus deveres e responsabilidades, com uma personalidade capaz de assumir, em todas as circunstâncias, as consequências das suas decisões.
Viver em democracia não é ser livre ao ponto de cada um fazer o que quer, quando quer e onde quer, sem medir as consequências dos seus próprios atos, sobretudo quando as decisões de uns afetam ou podem afetar a vida dos outros e impedi-los de viverem em segurança. Quer dizer, isto aprende-se. Aprende-se, quando se ensina, não a liberdade pela liberdade como valor “absoluto”, mas quando o valor “absoluto” é o “outro” em relação a “mim” que sou também valor “absoluto” em relação a “ele” e por isso cuidamos um do outro sem qualquer questionamento, mesmo que isso signifique renúncia a algum direito pessoal. No final, isto resulta num bem para todos.
A sociedade “quer” ensinar isto, mas, na realidade não ensina, porque só ensina a luta pelos direitos e garantias conquistados num “Abril” de memória curta. Se perguntarmos aos cidadãos quais são os seus deveres para com o outro e para com a sociedade, é difícil encontrarmos alguém que reconhece deveres concretos. E se perguntarmos se os cumpre, dirá que sim, quando é vigiado pela polícia ou pelo medo de ser penalizado.
Numa sociedade em que a democracia começa na responsabilidade dos cidadãos e não na forma política de eleger os seus representantes, até é possível o incumprimento de alguma norma, porque ninguém decide incumprir só porque lhe apetece, mas apenas nas situações em que a lei prejudica a vida comum, em vez de a facilitar, como são situações de urgência, emergência ou risco grave para a vida individual ou coletiva.
A pandemia está a revelar a incapacidade e impreparação de todos para a vida em democracia. Os políticos têm medo dos cidadãos e os cidadãos medo dos políticos, por eles eleitos. É por isso que os políticos estão a esconder permanentemente a verdade. É a conta-gotas ou à força das evidências que os governantes vão dizendo, a medo, a situação real porque temem que os cidadãos lhes reconheçam a incapacidade para a governação e provoquem uma crise política ou os penalizem nas próximas eleições. Seria melhor ser claro e dizer aos cidadãos, que não têm resposta, por isso, todos têm que se portar bem. Não há hospitais, nem ventiladores, nem médicos, nem enfermeiros que cheguem, se não cumprirmos todos umas quantas regras essenciais. E mesmo cumprindo, o vírus é de tal modo severo que dificilmente passaremos sem que aconteçam situações dramáticas. E também, que não temos dinheiro e que, portanto, vamos fazer o melhor com o pouco que temos. Mas não. O governo atua com medo e como não é eficaz só lhe resta meter medo aos cidadãos e esquece que muitos não têm medo. Símbolo desta atitude é o resultado do último Conselho de Ministros.
O Presidente da República e o Primeiro Ministros foram dizendo que era necessário decretar um Estado de Emergência Nacional, mas que seria mais suave do que os anteriores. Tinha que ser mais suave para não exaltar os portugueses e não levantar movimentos de contestação. Aprovado que foi o Estado de Emergência as medidas que surgem do Conselho de Ministros são tudo menos suaves para uma parte significativa dos portugueses. O governo sabe que os portugueses que o elegeram não vão ficar contentes, então, a medo, revela as conclusões à meia noite, numa longa comunicação que nos adormeceu.
No dia seguinte, perante a realidade, surgem contestações e logo o Primeiro Ministro, amedrontado, veio desdizer o que tinha anunciado, como acontecera anteriormente com os feirantes. Afinal, os portugueses já podem fazer compras ao domingo à tarde. Pressão das grandes cadeias de distribuição e dos hipermercados? Talvez. Irá acontecer o mesmo com os restaurantes? Não sabemos. Estamos em situação de grave disseminação do vírus, mas as exceções à regra do recolher obrigatório são tantas que basicamente cada um pode fazer o que quiser.
A falta de reflexão sobre o impacto das medidas decididas e a falta de pedagogia na revelação das mesmas obriga o Primeiro Ministro a desdobrar-se em comunicados e entrevistas para explicar o que não tem explicação e oferecer medidas que depois não resolvem nada, ou porque não chegam a tempo ou porque estão de tal modo armadilhadas com obrigações que não servem ninguém. É o que vai acontecer com a restauração e tem acontecido com muitos outros setores.
Os portugueses já não acreditam no governo e como o nível de consciência cívica tende a diminuir à medida que a vida de cada um entra em colapso económico, perde-se o medo do vírus e perde-se o medo da repressão, porque vivemos em democracia e pode haver levantamentos como tem acontecido em outros países.
Estamos num momento crítico da vida nacional. Estamos todos em risco de perder a saúde e todos a ficar mais pobres em muitas dimensões da vida, também na parte económica. Torna-se necessário que os poucos que estão a enriquecer, porque os há e de que maneira, não queiram ser ricos sozinhos e partilhem, criando riqueza para todos. É urgente que o governo se lembre de todos e não apenas de levantar a economia nacional. A economia dos mais pequenos também tem que se erguer se queremos ser uma verdadeira democracia.
Estamos num momento crítico. Somos cidadãos mal treinados na arte da democracia e temos políticos mal preparados na arte da pedagogia. Entre uma e outra carência temos que enfrentar a adversidade com todas as armas defensivas, para conseguirmos chegar a bom porto sem nos perdemos do essencial da vida e sem ferir ninguém de morte, para não nos arrependermos.
Da parte dos cidadãos é necessária a maior colaboração, sem medo de perder a liberdade, porque a verdadeira liberdade ninguém nos pode tirar. E da parte dos governantes tem de haver mais verdade, mais coragem e resiliência e se possível, um pouco mais de pedagogia para que todos os portugueses compreendam que esta é uma luta de todos e para todos e não apenas de alguns para o bem de poucos, como costuma acontecer.◄
- Publicado em PALAVRA edição de novembro 2020
1 Comentário
Sou leitor da PALAVRA e aproveito a oportunidade para elogiar o jornal em geral, mas acima de tudo o editorial. Vou referir dois editoriais que foram, para mim, dois textos de antologia pura: o de 13 de dezembro de 2019 (Há pessoas que nunca saem do presépio) e o de 13 de novembro de 2020 (A democracia começa em cada um…).
Como democracia e política, seja por defeito, intencional ou até negligência, todos fazemos! Estes textos deviam ser mais divulgados na nossa comunidade, uma vez que o “analfabetismo” democrático é político pode acabar com a nossa liberdade e sai-nos muito caro.
Bom trabalho e um Santo e Feliz Natal!!!