As letras são sons que o coração ressoa e que a boca coloca cá fora a bailar entre as nossas cabeças. As letras têm uma vida, para além da tua vida e para além dos teus sonhos que não dizes. As letras vieram com o mundo, mesmo antes de serem criadas já existiam, cativas por vontade, libertas por convite. Gostava de me escrever em letras que fossem capazes de viver apenas por serem minhas…
Quando o mundo se tornou mundo, muitas coisas foram criadas para que assim acontecesse. Tenha sido num lampejo de luz que venceu o escuro, tenha sido numa semana de criação harmoniosa, encadeada, firme e por amor, ou tenha sido por tudo isso para o bem e para o mal da história dos que vieram depois disso, as letras vieram junto. Quando a luz venceu o escuro e quando as águas foram separadas do céu, da terra bruta, nunca pisada, virgem, sólida e firme, vieram as letras. As letras foram sempre como que matérias em bruto que se vão deixando moldar, esculpir e inflamar em palavras que só mais tarde haveriam de ser ditas pelos primeiros falantes. Mas as letras, existiam já mesmo antes de terem sido ditas pela primeira vez…
Quando O Criador criou, amou com esse gesto infinito, indelével, profundo e rigorosamente belo, seu, apenas seu. Quando O Criador amou a ponto de criar, a ponto de fazer da luz o dia e deixar as trevas na noite, fê-lo com letras, fê-lo atirando todas as letras em bruto em torno do diâmetro de uma esfera bonita que durante tanto tempo as letras deixaram parecer que era quadrada. Quem cria, nem sempre sabe o que vai ser a sua criação, nem sempre acredita que a sua criação será eficaz, permanente, bonita e consequente. Tenha sido num lampejo de luzeiro instantâneo por amor, por descuido, tenha sido jornada articulada e sentida, por missão, por propósito, não sei hoje se seria possível estar certo de que tudo daria certo, não fossem as letras que ainda em bruto, se foram distribuindo por toda a esfera, na terra e depois nos mares, e depois no ar que então e hoje se continua a respirar.
Quando O Criador criou, quereria crer que tudo o que vivia fosse capaz de dar vida a tudo o que parecia ser imóvel, e parado e solto mas sem movimento. Cria e acreditava que as letras seriam capazes, no tempo certo, de deixar bem claro que apenas quem cria, ama, mesmo que pareça não querer que esse amor nos retenha, dando-nos a liberdade de também criar, de dar vida, de viver, de amar. Quando O Criador criou, ficou sem palavras perante a beleza da sua imensa criação, pela sua simplicidade complexa, e pela sua complexidade sem fim. Ficou sem palavras, como quem fica sem saber o que dizer por amor. Como quem fica sem saber para onde olhar primeiro, por amor. Como quem fica sem respirar direito, por amor. Como quem ousa fazer diferente e de novo, por amor. Mas tinha letras…
Quando as letras foram criadas, estavam em bruto, ao contrário de nós que somos criados na mais pura inocência e na maior pureza que se conhece neste universo de estrelas que brilham, mesmo depois de lá longe já não serem estrelas com vida. A luz tem essa particularidade, viaja e alumia, aquecendo quem olha, muito para lá do dia em que essa luz deixou de ser emitida galáxia fora. Quando as letras foram criadas, estavam em bruto, como que escondidas, dissimuladas entre outras coisas que aparentemente não teriam vida, ao contrário de nós que nascemos em branco e linho, em seda e amor, numa pureza e delicadeza tais que todos nos querem ver, lembrando as suas próprias meninices, as suas próprias criações, as suas próprias inocências, o seu tempo mais bonito, mais puro, mais amor.
As letras vão depois sendo trabalhadas. Primeiro juntas apenas para fazer sons e todos viram que isso era bom, apesar de parecer estranho, por ser novo, por se ver sair vida de algo que parecia não viver apenas por estar em bruto, pela sua aparência cor de terra, mesmo à luz da luz, ou na escuridão da falta dela, do outro lado do abismo. As letras foram divergindo assim em sons de frio e de calor, em sons de alegria e sons de medo, em sons de vitória e em sons de derrota. Foram vivendo dentro dos corações, nos corpos que não sonhavam ter nada dentro de si, que não sonhavam conter a maior arma de todos os tempos.
Às mãos das palavras criadas depois por desordem dos que foram criados do Criador, morre-se e sofre-se, apenas pelo dizer afirmativo ou negativo de uma mera e simples, única palavra. Sonhamos, rimos, crescemos e fazemos tudo com palavras de luz e festa, e sabemos que isso é bom. Matamos, deixamos morrer e morremos a pouco e pouco por palavras duras, demasiado gastas, pobres por já não serem em bruto, mas porque esculpidas com a raiva de quem quer querer sem nunca ter sequer feito um esforço para crer no poder que as palavras, feitas de letras juntas, ainda hoje e desde sempre comportam. E sabemos todos que isso nunca poderá ser bom.
Ao contrário das letras, caminhamos da pureza para a brutalidade de sermos gente em bruto. Começamos a viver na candura doce de um amor eterno, e vamo-nos transformando em meros sons, esgares que não ressoam em coração algum e que nenhuma boca pode produzir com amor, transformando tudo o que sabíamos ser bom, em silêncio, votado ao abandono, envolto num enorme conjunto de letras puras, de branco e linho, em seda e amor, porque um dia foram criadas para que nunca no mundo as memórias deixassem de ser escritas. Ficamos assim em bruto e já ninguém nos olha. Deixamos de ver a beleza das palavras e deixamos de procurar nas letras, na sua luz, na sua força, na sua capacidade criadora, o renascimento de uma obra criada para criar.
Gostava de me escrever em letras que fossem capazes de viver apenas por serem minhas e por criarem palavras que ficam para lá de todos os tempos, para lá dos momentos, para lá do que sou. Quando o mundo já não for mundo, as letras continuarão a ser de uma beleza inigualável…◄