Tempos estranhos estes que vivemos. Estranhamente vamo-nos adaptando a novas realidades, e vamos dando a conhecer o que somos numa alucinante viagem entre o nosso melhor e o nosso pior enquanto Homens Velhos num Velho Mundo. Queremos começar a começar de novo, sacudindo a poeira dos ombros após a queda do telhado na nossa cabeça. Mas antes de nos levantarmos, teremos que ser capazes de escutar o que se passa em torno da nossa vida.
Qualquer pandemia tem como principal objectivo derrotar-nos. Esta em particular, além de ter tirado vidas, deu-nos a oportunidade de repensar vidas, de não nos deixar-mos derrotar assim tão facilmente. O mundo andava já globalizado de coisas boas e bonitas, mas também de outras feias, duras e degradantes. Globalmente o mundo padeceu perante a dúvida, o medo e a incerteza. Morreram pessoas, ainda hoje morrem pessoas. Mais do que fechados em casa, ficamos muitas vezes fechados em nós mesmos, frios e absortos, com a tentativa de proteger os nossos, virados para o que nos pertence.
O mundo foi-nos colocando à prova e aqui e ali fomos respondendo à provocação, encontrando estratégias de sobrevivência social, de relacionamento paredes meias, de contactos para lá dos abraços proibidos. Passámos mais tempo em casa, em família, e isso, quando tudo corria bem, abria-nos horizontes de amor, levava-nos a experimentar novas sensações de encontro verdadeiro entre pessoas felizes, num tempo infeliz, quase que envergonhados com essa felicidade de viver mais a nossa família. Outras vezes penso que algumas casas viraram campos de batalha, infernos dos tempos modernos onde pequenos apartamentos se transformaram em campos de refugiados.
Muitos de nós ficaram sozinhos, morreram sozinhos não às mãos da pandemia infecciosa, mas pela falta de mãos que combatiam sempre a solidão, o isolamento, a tristeza e a desumanidade gritante de beira de ruela, e que neste tempo, deixaram de poder ser dadas, deixaram de aparecer, deixaram de agarrar as vidas precárias de pessoas que morriam antes de tempo, mas que eram sempre salvas a cada visita. As visitas acabaram e com elas acabou o fio ténue que prendia tantos de nós à vida, e por isso morremos, muitos de nós já morremos, sozinhos, infectados pelo desamor e pelo abandono que nos atira para o canto da vida, esperando apenas a morte chegar. Não é o bicho que nos mata, a muitos de nós o bicho matou as oportunidades que nos eram dadas de não morrer de tristeza, renovando esperança a cada dia. O bicho matou a mensagem, e os mensageiros deixaram de salvar vidas.
Temos vindo a dizer que agora é que foi, que aprendemos com esta crise e que os erros, e as insensibilidades de antigamente, nunca mais vão ser repetidas. Engano, puro engano. Na melhor das hipóteses, aprendemos a lavar as mãos, mas isso, convenhamos, nós já fazíamos com alguma estima, desde Pilatos, a bem dizer. Não aprendemos nada, muito pouco alguns de nós. Outros podem ter aproveitado para melhorar a sua forma de viver, e ainda bem, mas no limite, quando o mundo voltar a poder ser um mundo mais livre dos grilhões desta crise (até vir a próxima), penso que seriamente vamos esquecer este tempo e o que poderíamos ter efectivamente aprendido nele. Nem sequer este é o pior tempo, é apenas um tempo, o nosso, e só por isso já deveria ser o melhor tempo de sempre, por ser o nosso, aquele onde temos possibilidade de criar, de amar, de viver e de fazer a diferença. O tempo dos outros não me importa muito, mesmo que hipoteticamente tenha sido melhor, nunca o poderei provar, e provo agora que este meu tempo, é unicamente para mim, até que morra, mesmo que morra a tentar viver.
“De hoje em diante…” muitos de nós já falaram isto, ontem, ou na semana passada, ou há uns meses atrás. E quando dizemos, sorrimos, cerramos a dentadura e parece mesmo que vai ser. Nem sempre é. Mas terá que ser. Vamos, mesmo quando caídos no chão, debaixo dos escombros, ganhar forças para querer viver de novo. Vamos escutar o que se passa em nosso redor, com os olhos fechados, atentamente, vamos escutar o que querem de nós, mesmo ali caídos no chão. Escutar terá que ser a primeira etapa da nossa recuperação. Escutar é sempre o caminho para sair de alguma encruzilhada ou sarilho. Quando escutamos, além de entendermos o que se passa à nossa volta, depois de desligarmos o botão do ruido que nós próprios fazemos em nós, entendemos também muitas vezes o que se passa connosco. Talvez escutar cada um o que ecoa dentro de si seja o mais difícil, já que ao que escutamos dos outros, falsamente vamos dizendo: eu estou a ouvir, claro, eu sei que sim… mas não estamos a escutar…
Depois de escutar com atenção, conseguimos reunir todas as forças para nos podermos levantar de novo. Escutámos e assim nos levantamos na direcção da solução, encarnando o papel que traz a reviravolta no filme, assumindo o papel do herói dessa história que se encontra permanentemente a ser escrita com a nossa vida. Quem escuta verdadeiramente, entende o outro, entende o seu coração e entende o mundo, podemos salvar a nossa vida quando escutamos e se escutarmos com amor, com disponibilidade e com decência, podemos salvar a vida de tantas pessoas que nos falam, nos gritam em silêncio e procuram apenas que alguém as possa ouvir.
Escuta, depois levanta-te e anda, não tenhais medo de nada deste mundo…◄