Apesar do meu ateísmo, considero que Jorge Bergoglio, nome de batismo do Papa Francisco, é uma das personalidades mais marcantes e decisivas da cena pública mundial, uma das que toma posições mais ousadas na defesa intransigente dos mais desfavorecidos entre os humanos. Vem isto a propósito da última encíclica expendida do Vaticano, com o sugestivo título “Fratelli tutti” (“Todos irmãos”, em italiano). Nela o Papa Francisco denuncia as desigualdades e o “vírus do individualismo”.
O documento, considerado grau máximo das cartas pontifícias e de âmbito universal, pede ainda o fim do “dogma liberal” e defende a fraternidade “com atos e não apenas com palavras”. No sexto capítulo do texto, de 84 páginas, o destaque é uma menção ao poeta e compositor brasileiro Vinícius de Moraes (1913-1980). Dedicado ao “diálogo” e à “amizade social”, o trecho traz uma passagem da letra da música Samba da Bênção, escrito em 1962, por Vinícius e música de Baden Powel: “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”.
Na Encíclica o Papa falou sobre assuntos como imigração, a distância entre ricos e pobres, injustiças económicas e sociais, desequilíbrios na atenção à saúde e o aumento da polarização política em muitos países. O Papa faz ainda duras críticas ao neoliberalismo: “O mercado, por si só, não resolve tudo, embora às vezes nos queiram fazer crer neste dogma de fé neoliberal. Trata-se dum pensamento pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas perante qualquer desafio que surja”. E continua Francisco: “O neoliberalismo reproduz-se sempre igual a si mesmo, recorrendo à mágica teoria do ‘derrame’ ou do ‘gotejamento’ –sem a nomear– como única via para resolver os problemas sociais. Não se dá conta de que a suposta redistribuição não resolve a desigualdade, sendo, esta, fonte de novas formas de violência que ameaçam o tecido social”, disse.
O Papa prosseguiu afirmando que “a especulação financeira, tendo a ganância de lucro fácil como objetivo fundamental, continua a fazer estragos”. O mercado não pode cumprir plenamente a própria função económica, diz ele, sem formas internas de solidariedade e de confiança mútua.
“E, hoje, foi precisamente esta confiança que veio a faltar. O fim da história não foi como previsto, tendo as receitas dogmáticas da teoria económica imperante demonstrado que elas mesmas não são infalíveis”, afirmou, referindo que várias vezes já convidou a fazer crescer “uma cultura do encontro que supere as dialéticas que colocam um contra o outro”. O Papa ainda reforça que devemos incentivar essa cultura do encontro, em que todos possam aprender algo e em que ninguém é inútil “Isso implica incluir as periferias. Quem vive nelas tem outro ponto de vista, vê aspetos da realidade que não se descobrem a partir dos centros de poder onde se tomam as decisões mais determinantes.”
Na sua terceira Encíclica, o principal rosto da Igreja Católica retoma os temas sociais que serviram de bandeira nos seus sete anos de pontificado, como a necessidade de diálogo e faz reflexões sobre o mundo atingido pela pandemia de Covid 19: “Vimos o que aconteceu com as pessoas mais velhas em alguns lugares do mundo por causa do coronavírus. Não tinham que morrer assim, cruelmente descartados.”, lamentou. No documento faz ainda duras críticas aos nacionalismos, aos populismos, ao individualismo, “à cultura dos muros”, reconhece o direito às migrações, reivindicando ainda uma profunda reforma da Organização das Nações Unidas e do sistema financeiro mundial.
Depois de ler a Encíclica interroguei-me sobre a forma como os Trumps, Bolsonaros, e os aprendizes de feiticeiros populistas do “Chega!”, eles que se dizem, todos, profundamente protestantes e defensores dos valores da família e da livre concorrência e de todas as bojardas que, diariamente, alimentam as notícias, como terão reagido ao documento. Certamente considerando o Papa um perigoso comunista… ◄
- Publicado na edição impressa de PASLAVRA outubro 2020