Que nada nos limite, que nada nos defina, que nada nos sujeite. Que a liberdade seja nossa própria substância, já que viver é ser livre.“ Simone de Beauvoir

Escrevo este artigo ao som dos aplausos, das músicas e dos discursos que este fim de semana entoaram um pouco por todo o lado, sons de felicidade, de alívio, de união, de possibilidades, e sobretudo, de esperança. Os olhos do Mundo estavam postos na eleição do 46.º Presidente dos Estados Unidos da América (EUA), um ato eleitoral que nos obrigou a todos a pensar a democracia. Kamala Harris, Vice-Presidente eleita, citou no seu discurso o Congressista John Lewis “A Democracia não é um estado, é uma ação.” A democracia é, sem dúvida, uma luta contínua da qual todos devemos fazer parte, nunca a dando como garantida e lutando diariamente por ela, em prol da construção de um mundo melhor.
Congratulo-me com a vitória de Joe Biden e de Kamala Harris e congratulo-me, obviamente, com a vitória da democracia.
Joe Biden, o Presidente eleito, fez na cidade de Wilmington, no Delaware, o seu primeiro discurso aludindo a Abraham Lincoln e J. F. Kennedy, dois dos gigantes da construção da Nação Americana, dois gigantes da construção dos direitos do Homem e da pacificação mundial, para dizer que esta é a altura de restaurar a “alma da América”. No seu discurso de consagração, Joe Biden dirigiu-se, ainda à multidão referindo que: “Agora têm uma de vós na Casa Branca. Tenho a honra de ter comigo a Vice-Presidente Kamala Harris. Não digam que isto não era possível nos EUA. Há muito que isto era devido. Muitos lutaram durante anos para que isto acontecesse.”
Numa noite de celebração, foi impossível ficar indiferente às palavras proferidas pela primeira Vice-Presidente da história dos EUA. Kamala Harris será a primeira mulher negra e filha de emigrantes a ocupar este lugar, mas as suas palavras deixaram-nos fortes sinais de esperança: “embora eu seja a primeira mulher neste cargo, não serei a última!”
O discurso de Kamala Harris foi marcante pela evocação que fez à sua mãe e às várias mulheres que a precederam, mulheres que construíram os caminhos que a levaram à Casa Branca. Num ato de reconhecimento pelas lutas diárias travadas por diversas gerações ao longo dos séculos, a Vice-Presidente eleita refere:
“À mulher mais responsável pela minha presença aqui hoje, a minha mãe, Shymala Gopalan Harris, que está sempre nos nossos corações. Quando ela veio da Índia, aos 19 anos de idade, provavelmente não imaginou este momento, mas acreditava profundamente numa América onde um momento como este fosse possível e é por isso que estou a pensar nela e em todas as gerações de mulheres, mulheres negras, asiáticas, brancas, latinas, latino-americanas, que através da história da nossa nação foram construindo o caminho para este momento, esta noite. Mulheres que lutaram e sacrificaram tanto pela igualdade, pela liberdade e pela justiça por todos, incluindo mulheres negras que são muitas vezes, demasiadas vezes, ignoradas, mas que tantas vezes provaram que são a coluna vertebral da nossa democracia.
Todas as mulheres que trabalharam para garantir e proteger o direito ao voto durante mais de um século. Há 100 anos com a 19.ª Emenda, há 55 anos com a Lei dos Direitos de Voto e agora, em 2020, com uma nova geração de mulheres, no nosso país, que votaram e continuaram a luta pelo direito fundamental de votar e ser ouvidas.
Esta noite, reflito sobre a sua luta, a sua determinação e a força da sua visão, para perceber o que pode ser desoprimido pelo que aconteceu. Eu apoio-me nos seus ombros.”
Pegando nas palavras da Vice-Presidente eleita nos EUA, retomo a metáfora dos anões sobre os ombros dos gigantes que abordei no passado artigo, onde escrevi “nós, enquanto anões aos ombros de gigantes, podemos ver mais e mais longe, não porque temos mais visão ou mais altura que os nossos antecessores, mas porque temos o privilégio de ser carregados sobre a sua estrutura robusta e consolidada”, temos, efetivamente, a sorte de nos podermos apoiar nos ombros dos gigantes que trilharam os caminhos que nos trouxeram até aqui.
Como é importante nos dias de hoje compreender esta metáfora!
A democracia nos EUA viu, assim, este fim de semana começar a ser escrito um novo capítulo da sua história, onde a Mulher assume uma centralidade há muito reivindicada, uma centralidade conseguida por tantas mulheres que se dedicaram a causas, que defenderam e lutaram pelos seus direitos. Kamala Harris reconhece que conseguiu chegar onde chegou porque teve o privilégio de se poder apoiar nos ombros de gigantes, na história que várias mulheres conseguiram escrever. Esta mulher, negra, descendente de imigrantes indianos abriu a porta às novas gerações para quem agora será mais fácil sonhar e acreditar.
Kamala Harris pode agora dar voz a todos as mulheres que a História teimou em silenciar. O caminho por ela percorrido permitirá que muitas mulheres se sintam representadas, com significância, ouvidas, mulheres com voz, sem limites que as definam ou sujeitem, mulheres livres, dando sentido às palavras e luta de Simone de Beauvoir, para quem a liberdade deve ser a própria sustância, “já que viver é ser livre”!◄

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