Não creio que por estas páginas me tenha debruçado em demasia sobre a pandemia que atravessamos, tentando não cair na tentação de a tornar o único tópico de conversação e debate. O primeiro motivo será, talvez, o facto de este vírus ter servido no fundo para revelar muitos outros problemas estruturais da nossa sociedade, e para tornar ainda mais evidentes as diferenças entre maiorias e minorias, opressores e oprimidos.
Veio demonstrar (caso evidências faltassem ainda) a importância de um serviço nacional de saúde público para todas e todos, em que se invista e que se cuide; veio mostrar (caso evidências faltassem) a fragilidade de se tornar a saúde em um negócio, onde apenas se pode tratar quem tenha como pagar (veja-se a situação dos Estados Unidos); veio trazer muitos discursos antiquíssimos, empoeirados, que se acreditavam ou extintos ou longínquos. Trouxe, no fundo, a certeza de que andamos há anos a lidar com vírus tão graves quanto o covid-19, com casos de sintomas gravíssimos ou casos de portadores assintomáticos: e, qual ciclo vicioso, todos esses vírus acentuam as desigualdades que um olhar mais desatento possa não captar.
Claro que, como qualquer doença, qualquer um destes vírus não faz, por si só, distinção entre as pessoas que apanha; porém, a verdade é que as consequências de qualquer uma destas pandemias que nos assolam são vividas em primeira mão quase exclusivamente por quem é pobre, por quem é precário, por quem é posto de parte.
Existem muitos vírus: covid-19, populismo, extrema-direita, gripe das aves. Destes, até ver, não contraí nenhum, mas temo todos os dias por todos os assintomáticos com que me cruzo: se durante tanto tempo não houve sintomas, como se explica que de repente surjam? Tê-los-ão tido durante todo este tempo? Será que me pegaram alguma coisa? Todos me parecem altamente contagiosos, em bom rigor (vejam-se, por exemplo, as chocantes sondagens para as eleições presidenciais que aí vêm)!
Existem muitos vírus: talvez possa ter imunidade a alguns destes (os mais fáceis de ganhar imunidade, claro, onde basta estarmos atentos e ver o mundo, verdadeiramente, sem apenas o olhar de relance), espero francamente que assim o seja. Temo por todos os que não são imunes, e temo por todos os que, qual rebeldes sem máscara, vão mundo fora contagiar quem não tenha imunidade. Porque, de facto, não existe serviço nacional de saúde que trate todos os vírus, apesar de todos, de uma forma ou de outra, terem tratamento.
Muito como o covid-19, resta-nos ter tranquilidade mas foco, calma mas impaciência, foco e cautela mas força para lutar por dias melhores.◄