Se ao menos fosse possível olhar para isto tudo como se fosse a primeira vez que que o fizesse – aquele sentimento de quase remorso trespassou-lhe o peito num aperto, regressava a casa depois de mais um dia de trabalho, sozinha. Gostava de estar sozinha. De conduzir em tardes de chuva rala como esta, perdida em lembranças, projetos, ideias. Era dada a saudades imensas e choro fácil, e a solidão era a catarse para aquele fim de dia simultaneamente final de semana. Os campos à sua volta estavam a transbordar de cor. Aquele tipo de coisa que uma tarde de verão aliviada pela chuva e pela trovoada eminente faz na natureza. O céu estava de um azul petróleo, carregado, e os fios elétricos que ladeavam a estrada amparados pelos postes de madeira, eram agora riscos de metal a brilhar no firmamento, os pardais eram também pontos de aço a esvoaçar. O olival novo por estas bandas era tão verde que os olhos da gente se enchiam de água ao olhá-lo. E aqui e ali, alguns restos de Alentejo amareleciam como é seu uso rendidos ao calor infame de julho.
Era perfeito tudo o que via. E não se lembrava do dia que tinha olhado de veras aqueles campos. Como tinha sido, tinha ficado boquiaberta? Esmagada por tamanha beleza? Ou como todos os outros dias tinha apenas dado como adquirido tudo o que lhe era oferecido desde que deitara os olhos a este mundo. Queria ser forasteira, chegar e pasmar, olhar de perto, contemplar o longe e surpreender-se pelo largo.
Tinha horror de trovoadas, rezava sem parar assim que ouvia o primeiro trovão, rezava com tanto fervor que podia ser confundido com raiva, tal era o medo. As trovoadas faziam o mundo ficar muito maior, tudo se agigantava, e habituada a sentir-se no leme da sua vida, via qualquer tentativa de controle esvair-se por entre as palavras da oração aflita.
Hoje, no entanto, conduzia numa velocidade moderada, sem pressas de chegar. E a pergunta sempre a surgir de um canto obscuro. Se ao menos pudesse ver tudo pela primeira vez.
Poder ver a mãe pela primeira vez. Encher os olhos até acima de mãe. Cheirar profundamente a mãe. O primeiro relâmpago iluminou o céu pesado. Fechou os olhos por um segundo e de pés já assentes sacudiu a cabeça. Só precisava de a ter visto mais uma vez.
E os filhos. Como foi que do pé para a mão cresceram de tal modo que deixou de lhes conseguir pegar? Fugiram-lhe por entre os dedos. E como foi quando os vi pela primeira vez?
O trovão suou, profundo. A música ia desligada. Havia ruído suficiente dentro da cabaça dela.
Sorriu, esquecida do horizonte de chumbo à sua frente. Os filhos era sempre a primeira vez que os via. Certo que não tinha decorado todos os minutos com eles, mas sempre que os via era uma descoberta, uma surpresa, uma sensação de incredibilidade. Era parte daquelas construções, parte dos defeitos, parte das qualidades, parte de todas as imperfeições incríveis.
Ligou os limpa para-brisas, já não era uma chuvinha intermitente e rala. Agora eram umas gotas pesadas que caiam com toda a força. Estava em picos para chegar a casa. Mas a viagem mal ia a meio e pouco mais lhe restava que fincar as mãos no volante, os olhos no que conseguia ver do caminho e rezar. Tinha a boca seca, como se fosse um cartão áspero, tão seca que lhe era penoso até engolir. Apetecia-lhe abrir o vidro e deixar a tempestade entrar, mas sabia que seria uma burrice fazê-lo. O tempo não estava para brincadeiras.
O coração batia a mil e as mãos estavam suadas. Era o medo. Tinha medo de ter medo. Ficava desarmada, vulnerável, entregue, coisas que não ousava permitir-se. E se calhar devia. Como era doce o caminho que a tinha trazido até aqui. Sempre de mãos dadas. A solidão fora uma escolha solarenga e nunca um infortúnio. O medo, no entanto, deixava-a por um fio.
Quando finalmente parou o carro à porta de casa. Ainda debaixo de chuva, desligou a ignição, depois as luzes, os limpa para-brisas, e ficou ali uns minutos a recuperar o fôlego. Abriu a porta do carro, correu para a porta de casa, rodou a chave e entrou completamente encharcada. O gato esperava-a na porta, afagou-lhe as orelhas e já dentro de casa teve aquela sensação única de ver uma coisa pela primeira vez.◄

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