As medidas de confinamento vão dando espaço a que se crie uma segunda onda de Estado de Emergência. Em Portugal a situação ainda não é tão radical: os restaurantes ainda estão abertos, o comércio ainda é permitido, assim como encontros culturais e sociais. Gostei bastante da abordagem que adotaram em Portugal perante esta segunda crise de covid 19 e o mesmo não posso dizer acerca de outros países Europeus.
Mal queria acreditar quando no passado dia 30 de outubro o presidente da França, Emmanuel Macron, anuncia o estado de emergência aos jornalistas sem que nenhuma medida tivesse sido discutida no parlamento ou tivesse sido sujeita a voto. Não o esperava ‘d’un état de droit’. Na República Checa, o governo meteu os pés pelas mãos como já era de esperar: a partir das 21h até às 5 da manhã do dia seguinte é proibido circular nas ruas. Obviamente que chegando a este extremo não vale a pena dizer que tudo está mais do que encerrado: cafés, bares, restaurantes, lojas, etc…
Tendo em conta o cenário da República Checa, onde as lojas e o comércio em geral estão encerrados, como já acontece em França, a minha pergunta é: quem está excluído deste processo de ‘salvar vidas’ e quantas vidas serão perdidas devido às consequências do confinamento?
Judith Butler, filósofa estadunidense e uma das principiais teóricas contemporâneas do feminismo, lançou o seu último livro intitulado, A Força da Não Violência, no qual a autora se pergunta constantemente: ‘que vidas são consideradas como dignas de tristeza?’ – de indignação, de ressentimento, de mágoa, em última instância, de luto. Quem são os vulneráveis e quem são os não vulneráveis, como se dá o processo da vulnerabilidade, o que é a violência afinal e por quem é legitimada? – é legitimada pelos sistemas económicos e por acordos institucionais que se regem por um determinismo tradicionalista e biológico. A biopolítica é um poder regulador que ‘faz viver’ ou ‘deixa morrer’, sendo que o direito a viver não existe – o direito a viver deve primeiro ser estabelecido afim de ser exercido, o que nos leva a concluir que existe uma distinção entre seres viventes e seres não viventes. Aqueles que não têm direito à vida são destruídos e é como se nada tivesse acontecido, apontemos como exemplo, todos os refugiados que deixamos morrer no Mediterrâneo porque não são registrados dentro do nosso campo percetivo de doloroso, uma vez que desde o início tal vida não valia a pena ser salva porque que nunca foi registrada como vida. Este tipo de violência e de agressão é justificado através de uma lógica que se baseia na inversão da agressão, funcionando não apenas como uma defesa, mas como moralização do assassinato.
Não precisamos de ir tão longe, porque o confinamento que estamos a viver é em prol de uma minoria privilegiada. Depois há aquele grupo de pessoas que têm que sair de casa para trabalhar por falta de opção; os prisioneiros metidos em celas sobrelotadas sujeitos às condições mais precárias; todos os cuidadores que têm que sair de casa para cuidar de outras pessoas (por ex. lares) e que estão sujeitos a ficarem infetados ou a outro tipo de situações, aliás já tivemos um exemplo muito real e muito próximo. Os mais vulneráveis, como sempre, são os que estão mais expostos à doença e à morte.
Afim de uma sociedade mais igualitária está a diluição de opostos entre vulneráveis e não vulneráveis, porque tal noção dá azo a uma hierarquia e a uma atitude paternalista de poder, dos não vulneráveis sobre os vulneráveis. É necessário escavar mais fundo, estar atento e lutar por direitos igualitários. Não me esqueço que, há um ano atrás, dois eurodeputados portugueses votaram contra o reforço de salvamento de migrantes. A moção foi assim chumbada por dois votos – uma resolução que obrigava os Estados-membros da União Europeia a reforçar as suas operações de busca e salvamento no Mediterrâneo, com o intuito de salvar mais vidas humanas e chegar a um consenso sobre a distribuição dos migrantes socorridos no mar. ◄

 

  • Publicado em PALAVRA novembro 2020

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