Se a pandemia que nos assola tem tido alguma virtude, é a de ter demonstrado o monumental falhanço do modelo económico que suporta esta sociedade dependente em exclusivo do consumo. O modelo é certamente muito bom, mas apenas para os poucos que dele beneficiam porque para a sociedade em geral, para todos os que alimentam o sistema, tornou-se num enorme desastre. Vivemos, com o vírus, uma situação aflitiva em que tudo está em causa – os empregos, as empresas, a produção e o consumo – ou seja, todo o modelo está em colapso. Mas, espantosamente, parece que ninguém aprende com os erros. Ninguém se desvia um milímetro da rota que nos levará até ao abismo. Os responsáveis por esta economia em derrocada não querem reformar o sistema porque não estão minimamente preocupados com a sustentabilidade futura das pessoas nem do próprio sistema. Apenas pensam no dia de hoje, nos lucros e no poder que os bolsos cheios de dinheiro lhes dão, e não se ralam com o futuro, nem com a sobrevivência global ou qualquer outro interesse altruísta. São uma espécie de tiranos que nem com a própria sobrevivência se apoquentam. Vivem à custa de quem trabalha e de quem consome e por isso não estão interessados em alternativas, mesmo que também eles possam vir a ser afetados. Eles sabem que, primeiro, sofrerão os da base da pirâmide, os que alimentam o carrocel trabalhando e consumindo. No entanto, todos sabemos que sem obreiras a trabalhar, a grande colmeia das grandes companhias, dos bancos, das seguradoras, das multinacionais e das marcas, não se consegue sustentar. Mas, “enquanto o pau vai e vem, folgam as costas” destes empreendedores, e esperam que novas soluções e alternativas apareçam, entretanto.
Por outro lado, todos os que voluntariamente se fartam de trabalhar para comprar coisas desnecessárias, apenas porque têm a ilusão de que consumindo desenfreadamente, gastando tudo o que ganham – e o que não ganham porque a maioria até compra a crédito – ficam com uma vida melhor, com as ambições satisfeitas, e com o ego cheio, não se apercebem de como estão a ser usados. O sistema está muito bem construído. Os políticos e mandarins intermédios vão-se encarregando de manipular as massas, de fazer a manutenção do sistema e de manter a ilusão, alimentando o vicio.
Há quem diga que isto é conversa de quem acredita em teorias conspirativas características de quem só vê fantasmas onde não existem. No entanto, a realidade está aí à vista e ninguém acorda. Todos continuam a remar contra a maré. Vejamos um exemplo pratico de que a política continua inalterável, apostando nos modelos que estão a fracassar: foi recentemente anunciado, em plena crise, com a pompa habitual e apresentação publica numa universidade, neste caso de Évora, um novo “projeto de desenvolvimento”. Trata-se de usar três dezenas de estações ferroviárias desativadas e devolutas para servirem de sorvedouro num programa do Governo, denominado “Revive Ferrovia”. Em 2021, serão estes edifícios concessionados a privados que os vão reconverter para fins turísticos, à semelhança do que fizeram há uns anos com outras construções abandonadas (conventos, igrejas, escolas, instalações industriais). Mas, a visão desta gente, só sabe apontar numa direção: o turismo. Ninguém pensa noutras alternativas como sedes de associações, centros sociais, culturais e de apoio à juventude, salas de teatro, casas para sem abrigo, etc. Só o turismo é que lhes interessa. Porquê? Porque é consumo, investimento privado que usa dinheiro emprestado e vai empregar novos consumidores.
A Sessão de apresentação do projeto realizou-se de acordo com o protocole habitual, com a presença de altos cargos governamentais e locais – os tais intermédios que continuam a alimentar o sistema moribundo – e amplamente divulgado na imprensa, que como sempre está sedenta de agradar ao poder, com notícias que vão escorando a máquina de propaganda, e assim receberem em troca os favorzinhos habituais.
As estações que integram o “programa”, que vai desbaratar mais uns quantos milhões de dinheiro vindo da Europa, situam-se em linhas ferroviárias do Alentejo, Bragança e Viana do Castelo, que em tempos foram desativadas pelos mesmos que agora as querem revitalizar. Entre elas incluem-se as do ramal de Reguengos. Trata-se de um programa “que segue o modelo dos Revive anteriores”. Ou seja, mais uma aposta na “reabilitação e animação turística de imóveis que se encontram num estado devoluto”, afirmou a secretária de Estado do Turismo, Rita Marques. A governanta falava aos jornalistas no final da assinatura dos contratos de financiamento com autarquias e agentes económicos. Os mesmos do costume, portanto, a mesma solução do costume, o mesmo modo de usar, mal, os dinheiros que nos mandam lá de fora. Mesmo sabendo toda a gente a situação em que vai ficar o turismo, com todos os desenvolvimentos, conhecidos e desconhecidos, que a pandemia está a provocar. Mas o que interessa é gastar dinheiro de qualquer maneira, e melhor não há que o turismo, uma atividade que já está a sofrer brutais consequências.
É assim que somos governados, por gente saloia, incompetente e medíocre, sempre ao serviço do poder e do mercado, que quer é que haja tontinhos a usar o dinheiro deles, e a pagar juros, comissões, impostos, e a criar empregos mal pagos para mais uns quantos consumidores. O processo não tem fim à vista. À vista mesmo é o descalabro da economia, a exploração, o consumo desenfreado e a ilusão, sempre a ilusão, de que “vai ficar tudo bem”.◄
- Publicado em PALAVRA novembro 2020