Quando vemos chegar o mês de novembro, começa a entrar em nós a nostalgia pelos que partiram marcados com beijos e abraços que lhes demos ou que deles recebemos ao longo dos anos em que as nossas vidas foram atravessadas pelo amor ou pela amizade ou tão simplesmente pela cordialidade. Não sou das pessoas que vivem a morte com as marcas da tristeza ou da saudade, num peso que veste de luto o olhar, o coração e a alma. Mas entendo que, mesmo quando durante a vida a distância entre as pessoas foi mais forte que os abraços, a verdade é que todas as vidas nos marcam e de todas nos ficou algo que gostamos de recordar e, às vezes, até às lágrimas.
A romagem aos cemitérios, num vai vem de flores e de lágrimas, tornou-se entre nós um ritual de remissão necessário, urgente e imperativo. A presença junto da pedra fria lavada com as lágrimas da alma e adornada com a saudade que os anos não deixam esquecer, antes aumentam, juntamente com as flores que nos fazem dizer, bem no fundo de nós mesmos, “estás vivo”, são absolutamente imprescindíveis no ritmo renovador da existência que nos priva da presença, da imagem, do outro que o coração chama.
No quadro da vida moderna, diante do progresso da ciência e da técnica, numa sociedade que ergue a bandeira da laicidade, alimenta a indiferença para com os valores ancestrais, sobretudo os da fé, parece descabido que se continue a visitar o lugar onde se depositaram os restos mortais daqueles que nos acompanharam durante a vida.
Há até quem apelide de hipócrita, o gesto de muitos que nestes dias correm à sepultura daqueles que em vida foram abandonados ou esquecidos ou negligenciados.
No fundo, nas entranhas do humano, existe a leve esperança de não ser para sempre o silêncio dos ausentes, que ainda possa ver-te, ouvir a tua voz, sentir o teu calor e continuar em algum lugar o que aqui começámos. Com razão, porque não só a esperança é certa, como é garantia de que este projeto, o humano, não é um fracasso inevitável.
No íntimo deste humano que nós somos habita uma certeza, que é desejo e promessa, que vai dizendo em cada passo dado neste mundo “não és daqui”. E cada um, mesmo que não o queira revelar ou nem reconhecer, sabe que depois da queda vertiginosa que é a morte, mergulhará para sempre no oceano da alegria que é o coração do Pai, origem e fim de todas as coisas. Se alguma dúvida persistir ela é desejo puro, pura inquietação que nos vai levar mais longe e mais profundamente ao conhecimento daquele misterioso primeiro olhar que tudo ilumina e nos abraça, até nos levar a respirar o oxigénio do amor eterno de onde nascemos.
Trazemos em nós a sede do infinito inesgotável que nos dá a certeza de estarmos já a viver as migalhas de um encontro com os nossos, que já partiram, mas ainda não com a luz daquele eterno olhar que nos convida a não ter medo.
Venham, portanto, flores a inundar a paz sem fim e palavras que possam ser orações de amor, que se dizem no segredo do coração ou em gritos de lamento que chegam aos céus, onde acreditamos estarem todos. Que os cemitérios não se fechem e as almas se encontrem na força da esperança que é mais forte do que a morte. ◄
- Publicado em PALAVRA novembro 2020