A última Encíclica do Papa Francisco, “FRATELLI TUTTI”, assinada no dia em que a Igreja celebra a memória litúrgica de São Francisco de Assis, 4 de outubro, apresenta-se como uma carta destinada a todos os homens “embora a tenha escrito a partir das minhas convicções cristãs, que me animam e nutrem, procurei fazê-lo de tal maneira que a reflexão se abra ao diálogo com todas as pessoas de boa vontade” escreve o Papa.
Uma das muitas curiosidades desta Encíclica está escondida nas citações que preenchem o texto papal. Se é verdade que o título o foi encontrar nas “admoestações” do santo de Assis: “Fratelli Ttutti” “Todos irmãos”, ao longo do texto, podemos encontrar, para além das habituais citações de documentos, homilias e discursos do próprio e de outros Papas e citações de documentos oficiais da Igreja como o Catecismo da igreja Católica e os Concílios, citações de outros autores que não é comum citar em documentos oficiais como este.
Fazendo um percurso pela Encíclica encontramos logo de início duas referência a Francisco de Assis, para dizer que é feliz quem ama «o seu irmão, tanto quando está longe, como quando está junto de si» e um apelo à paz mesmo com os infiéis “não façais litígios nem contendas, mas sede submissos a toda a criatura humana por amor de Deus».
De seguida cita Eloi Leclerc, escritor franciscano, no livro “Exílio e ternura” «só o homem que aceita aproximar-se das outras pessoas com o seu próprio movimento, não para retê-las no que é seu, mas para ajudá-las a serem mais elas mesmas, é que se torna realmente pai».
Mas, o Papa, vai mais longe e cita a “Eneida” de Virgílio «Sunt lacrimae rerum et mentem mortalia tangunt – são lágrimas das coisas, as peripécias dos mortais confrangem a alma», a propósito dos males que afligem a humanidade como as pandemias e os males causados pelo homem como as guerras e os ataques contra a natureza. Males que esquecemos facilmente sem aprender as lições da história, «mestra da vida» «Historia (…) magistra vitae» diz o Papa citando Cícero.
Gabriel Marcel, aparece mais adiante numa citação do livro “Du refus à l’invocation” para dizer que o homem não vive para si mesmo, não se realiza e não atinge a sua plenitude em si mesmo, mas no outro “no sincero dom de si mesmo». E não se conhece senão no encontro com os outros: «Só comunico realmente comigo mesmo, na medida em que comunico com o outro». É na relação de amor, que acontece fora de nós, como diz São Tomás que os realizamos: “diz-se que o amor produz êxtase e efervescência, contanto que o efervescente ferva fora de si e expire»
O Papa Francisco apela ao cuidado pelos pobres e para isso socorre-se de Lazarum Concio na afirmação «não fazer os pobres participar dos próprios bens, é roubar e tirar-lhes a vida; não são nossos, mas deles, os bens que aferrolhamos» e de São Gregório Magno: «Quando damos aos indigentes o que lhes é necessário, não oferecemos o que é nosso; limitamo-nos a restituir o que lhes pertence». Trata-se de gerar igualdade de direitos e deveres numa sociedade que promove a verdadeira cidadania, e cita o Imã Ahmad Al-Tayyeb no Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum, que os dois assinaram: “É necessário empenhar-se por estabelecer nas nossas sociedades o conceito de cidadania plena e renunciar ao uso discriminatório do termo minorias, que traz consigo as sementes de se sentir isolado e da inferioridade; isto prepara o terreno para as hostilidades e a discórdia e subtrai as conquistas e os direitos religiosos e civis de alguns cidadãos, discriminando-os».
«O homem é o ser fronteiriço que não tem qualquer fronteira» diz Georg Simmel, na obra “Ponte e porta. Ensaios do filósofo sobre história, religião, arte e sociedade” e é citado pelo pontífice para mostrar que é possível vivermos todos na mesma casa que é o mundo, e aproveita para citar Jaime Hoyos-Vásquez, no livro “Lógica de las relaciones sociales – Reflexión ontológica» no qual se afirma “nalguns bairros populares, vive-se ainda aquele espírito de «vizinhança» segundo o qual cada um sente espontaneamente o dever de acompanhar e ajudar o vizinho. Nos lugares que conservam tais valores comunitários, as relações de proximidade são marcadas pela gratuitidade, solidariedade e reciprocidade, partindo do sentido de um «nós» do bairro”. E o Papa acrescenta que isto tem que ser possível também entre as nações.
No contexto da reflexão sobre o liberalismo, o populismo e a democracia o Papa Francisco cita António Spadaro: «Povo não é uma categoria lógica, nem uma categoria mística, no sentido de que tudo o que faz o povo é bom, ou no sentido de que o povo seja uma entidade angelical. É uma categoria mítica. (…) Quando explicas o que é um povo, recorres a categorias lógicas porque precisas de o descrever: é verdade, elas são necessárias. Mas, deste modo, não consegues explicar o sentido de pertença a um povo; a palavra povo tem algo mais que não se pode explicar logicamente. Pertencer a um povo é fazer parte duma identidade comum, formada por vínculos sociais e culturais. E isto não é algo de automático; muito pelo contrário: é um processo lento e difícil… rumo a um projeto comum».
E avança para a ordem social e a importância da política colhendo referências de Paul Ricoeur, no «Le socius et le prochain», porque, entende que “não há vida privada, se não for protegida por uma ordem pública; um lar acolhedor doméstico não tem intimidade, se não estiver sob a tutela da legalidade, dum estado de tranquilidade fundado na lei e na força e com a condição dum mínimo de bem-estar garantido pela divisão do trabalho, pelas trocas comerciais, pela justiça social e pela cidadania política” e ainda de Wim Wenders, o cineasta autor do filme “O Papa Francisco – Um homem de palavra” para dizer que “as diferenças são criativas, criam tensão e, na resolução duma tensão, está o progresso da humanidade”.
A sociedade precisa de encontro, e Vinícius de Moraes sabe cantar essa realidade como nenhum outro no “Samba da Bênção” no verso “vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida”.
Para mostrar o papel da Igreja no contexto da política vai buscar a frase de Aristóteles “o ser humano é um animal político” e acrescenta, “embora a Igreja respeite a autonomia da política, não relega a sua própria missão para a esfera do privado. Pelo contrário, não pode nem deve ficar à margem na construção de um mundo melhor nem deixar de “despertar as forças espirituais” que possam fecundar toda a vida social. É verdade que os ministros da religião não devem fazer política partidária, própria dos leigos, mas mesmo eles não podem renunciar à dimensão política da existência”.
E termina a Encíclica citando o mestre do deserto Carlos de Foucauld, em “Meditação sobre o Pai Nosso” quando ele diz a um amigo “peça a Deus que eu seja realmente o irmão de todos”.
A Encíclica “Fratelli tutti” guarda muitos segredos, mas o diálogo de diversos autores imprevisíveis é uma das suas maiores riquezas.◄