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“Escravatura e frutos vermelhos”

O Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina tem sido alvo de forte cobertura mediática à conta da imensidão de estufas e dos milhares de trabalhadores oriundos de países longínquos. E mais recentemente pelos casos de Covid e do episódio do Zmar. O parque é uma estreita faixa de mais de 100 quilómetros do litoral Alentejano e do barlavento algarvio que se estende por territórios de Sines a Vila do Bispo. Inclui, para além da terra firme da faixa costeira, uma zona submarina de 2 km a partir da costa. O tipo de agricultura antinatural que ali se pratica, intensiva, fortemente consumidora de água, poluente e espalhada pelo território do Parque Natural, é agora notícia e por ainda piores razões.
Nos últimos anos, os governos têm tido um comportamento muito prejudicial para as nossas áreas protegidas, denunciado e criticado pelos grupos ambientalistas, seja pelos modelos como estão a ser geridas pelas entidades nacionais, equiparando por exemplo os parques naturais (só temos um, o da Peneda Geres) às restantes áreas protegidas, como pelo esvaziamento da sua autonomia com a extinção da figura e da autoridade dos seus diretores. E ainda pela diluição da sua gestão por uma complexa rede de entidades que complica e condiciona a tomada de decisões. O objetivo parece ser o de extinguir as áreas protegidas, por razões que se prendem com interesses de ordem agrícola – em especial esta nova agricultura que invade sem qualquer cuidado os solos e delapida o património em geral – turística, construtiva ou especulativa. Os grupos de pressão ao serviço destes interesses são poderosos e, em particular com o atual governo, estão bem à vista e são facilmente identificados. No caso específico, a situação ainda é mais grave porque envolve direitos humanos e exploração radical de pessoas em situações inadmissíveis de tráfego humano e de escravatura.

Não se sabe exatamente a área atual de estufas porque não há registos. Mas, estima-se que atinja milhares de hectares. Aparecem como cogumelos, sem necessidade de estudos de impacto ambiental ou qualquer outra autorização formal. Basta a aprovação financeira dos projetos, que envolvem milhões de euros, oriundos de fundos públicos e comunitários específicos para este sector muito acarinhado pelo governo socialista que formalizou o seu apoio institucional com a “Resolução do Conselho de Ministros 179/2019”, sobre a “expansão agrícola no perímetro de rega do Rio Mira”. O documento, se por um lado estabelece tímidos limites para a produção, “permite triplicar a área coberta de plástico existente e autoriza a colocação de contentores nas explorações agrícolas para albergar até cerca de 36 000 trabalhadores imigrantes, numa região que tem uma população de cerca de 26 000 habitantes”. São números inadmissíveis, que por si só degradam a região por ultrapassarem em muito a capacidade de carga das redes de água, esgotos, luz e a própria capacidade habitacional. A produção, em regime intensivo, é sobretudo de frutos de baga vermelhos (framboesa, mirtilos e amoras) mas também de hortícolas e plantas ornamentais, e violam as normas ambientais previstas no Parque Natural, nomeadamente pelo uso excessivo de fertilizantes e fitofármacos que degradam o solo e a qualidade da água, para além do forte impacto visual numa área que se propagandeia em termos turísticos como zona de turismo de natureza.Mas, para além da enorme incongruência da ocupação de solo protegido com áreas de plástico que destroem a paisagem e o solo, acrescem os problemas associados à emigração clandestina e à exploração desta mão de obra vulnerável e dependente das “empresas” empregadoras. O que agora foi divulgado, e que aparentemente já estava a ser investigada, pelo menos é isso que dizem os jornais, sendo legitimo desconfiar se não será apenas para salvar a pele das autoridades, é o gravíssimo caso de escravatura que atinge todos estes milhares de trabalhadores. A situação já vinha a ser denunciada há muito tempo. O surpreendentemente é que ninguém tenha feito nada até agora – sistema de justiça, governo, ministros e maioria parlamentar incluídos. Foi preciso este caso do Covid e do confinamento forçado de algumas freguesias da região para finalmente o assunto ter sido “descoberto” pelas autoridades.
O modelo de escravatura em causa é bem pior que a escravatura tal como a conhecemos, em primeiro lugar porque os trabalhadores entram nela voluntariamente, se bem que à espera de promessas não cumpridas. Depois, porque para além de aceitarem salários e condições miseráveis, por pensarem vir a obter fixação na europa, pagam por isso avultadas quantias aos “empregadores”. Fala-se em que cada trabalhador, para além de aceitar viver numa barraca, num contentor, ou num alojamento sem condições, completamente apinhado, onde paga mais de 100 euros por cabeça – outra exploração inexplicável que faz render a cada casa, sem condições, valores mensais de milhares de euros – ainda paga entre 10 e 15 mil euros pelo “contrato”. Esse dinheiro é depois dividido entre a “empresa” que os contrata e transporta para cá, e a empresa que os aceita como trabalhadores, sendo “descontado” do ordenado já de si miserável. Estamos a falar de um negócio, corrupto e ilegal, de centenas de milhões de euros. O estado sabe disto, não faz nada e até colabora. Ignora o problema a ver se passa despercebido, porque tem interesse no “desenvolvimento económico sustentado” – sempre o uso de termos falsos e mágicos – desta nova forma de exploração. Isto passa-se um pouco por todo o Alentejo, mas só foi agora revelado por causa do problema do Covid e do imbróglio do Zmar. Senão, assim iria continuar sem qualquer controle.
Um pais onde existe este tipo de escravatura e de exploração, disfarçado de empreendedorismo, pode ser considerado uma democracia? ◄

  • Publicado no Jornal PALAVRA, edição de maio 2021

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