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Oração de dar

Quando rezamos, pedimos ou entregamos? Quando entramos em conversa com Deus, dizemos o que queremos para a nossa vida, ou oferecemos a vida? Quando estamos no silêncio do nosso coração, exigimos mais para nós, ou contamos com o pouco que temos para colocar ao dispor dos outros?

E no fim da noite, já com o sol quente e agradável deste maio, para lá do horizonte, depois de tantas emoções, depois de tantos encontros, depois de tanta alegria, ainda em torno da fogueira, é hora de fechar o dia com a oração da noite. O madeiro estava baixo, já havia subido os seus clarões de vida na atmosfera familiar desta nossa casa ao ar livre. Tínhamos vivido tanto nesse dia, e na noite do dia anterior. E em todo o tempo que estivemos juntos a viver tantas aventuras. Eu tinha os olhos fechados, como se não quisesse que a noite acabasse já. Ficava ali mais tempo, ficava ali mais de mim, mas de todos. Pouco tempo antes tinha andado por ali a cantar e a saltar. No principio tinha recolhido sorrisos tão bonitos para dentro de uma caixinha digital…e que felizes estávamos todos naquele dia…
Quando as crianças saem da casa para estar connosco, vêm à procura de tempo para si, de oportunidades para experimentar superar a sua condição. Querem campo, querem jogo e querem que lhes possa ser dada oportunidade de se tornarem responsáveis para a vida. Aqui, sempre foi possível falhar, sempre houve espaço para criar e sempre que uma criança sonha, somos todos embalados por essa extraordinária forma de fazer o mundo avançar. Depois em casa, na família, todos notam quando isto acontece, as coisas bonitas em nós não se podem esconder e então as crianças contam com os seus olhos felizes, atropelam discursos para dizerem como foi, o que fizeram, onde chegaram na sua vida desse dia…conquistas, é disso que se trata e eu cresço tanto nessas conquistas pequeninas que nos tornam a todos mais gigantes.
O coração está cheio de alegria. Os olhos já se emocionaram tantas vezes hoje. As pernas pesam e os braços pedem descanso. Olho em meu redor, tudo está calmo, como que à espera da nota seguinte, da oportunidade de desafinar outra vez, ou então com o receio de que a noite tenha chegado ao fim. É sempre isto quando nos juntamos, o tempo voa, corre-nos entre palavras, e gestos, e olhares que se oferecem no meio da multidão feliz. As crianças quando vêm nestes dias, trazem também os pais, e os avós, e os tios e os primos e toda essa gente da sua vida. É importante para elas que a família venha saber porque ali são felizes. É uma bênção ter crianças felizes para ver crescer, para encaminhar crescer, para viver crescer. É uma bênção de Deus ser possível viver a oportunidade de fazer a diferença na vida destas crianças.
Então sou chamado a fechar a noite, a abrir os corações mais uma vez para que o tempo, e a vida e aquele momento de estarmos juntos nunca mais se perca, nunca mais se esqueça. Então as minhas pernas já lá vão, ao passo que o meu coração pula no peito e a minha alma vibra dentro de mim. Oportunidade de dizer palavras de Deus, não dos Homens. Oportunidade para falar de todos, não de mim. Momento para dizer o que não se pode mostrar a não ser que se viva mesmo. Não acredito muito em ladainhas nestes momentos, nem declarações de vazio ou pedidos de proteção. Nestes momentos acredito na oração.
No centro da arena do fogo, rodopio sobre mim procurando o olhar de todos os que ali estão. Meu Deus, que quadro vivo! Que moldura de gente viva querendo que as suas vidas valham mais do que o simples existir. Depois fico preso nas mães, nos pais, nos avós. Depois perco-me nos lenços de tantas cores naquele anfiteatro humano com vida a pulsar dentro. A oração é saber que a vida está ali e que é ali que a aposta de encontrar Deus é mais fácil. Rezar não é difícil. Rezar não é pedir, rezar é dar. Rezar é sempre dar.
Quem ama a vida, quem ama os outros, quem conhece, procura e ama Deus, quando reza não pede, quando reza apenas dá. Na oração entregamos tudo o que somos ao serviço dos outros. Na oração não pedimos nada para nós, a não ser pedir que nunca nos deixemos de dar aos outros. É assim que os pais dão aos filhos, é assim que os avós dão aos netos, é assim que nesta casa nos damos aos nossos. Fechamos a noite abrindo o coração outra vez. Deus está aqui, Deus está nestas palavras que vos ofereço e que não peço que aceitem sem questionar porque as digo. Procurem dentro da vossa vida, procurem dentro do vosso coração, todos e cada um e descubram quando foi a última vez que rezaram a vossa vida, que encontraram Deus, não nos pedidos que se fazem, mas antes nas ofertas que somos nós para que a vida dos outros sejam melhor.
Quem reza não pede, quem reza entrega-se nas mãos de Deus e aqui, somos isso…◄

  • Publicado no Jornal PALAVRA, edição de maio 2022

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