É preciso condenar sem ambiguidades, sem tibiezas, sem nenhuma dúvida, a invasão da Ucrânia pelas tropas russas. Nada legitima a invasão de um estado soberano, nada justifica esta situação de guerra declarada. Nada do que vou escrever pode desculpar o ato de um estado e de um presidente sedento de um poder imperial, baseado num capitalismo selvagem, assente em oligarcas. Mas também se deve rejeitar a análise “em preto e branco”, que divide em “bons” de um lado e “maus” do outro, a que temos assistido repetida e maioritariamente em tudo o que são televisões. Porque num conflito armado como o que decorre atualmente, há vários campos de análise, existem inúmeros acontecimentos que geraram o contexto que desembocou na guerra. Porque o comportamento dos vários contendores deve ser analisado de uma forma pragmática, e à luz da geopolítica atual. E só quem tem feito esse tipo de análise, distanciada, neutral, com argumentos conhecedores, têm sido os militares convidados, oficiais superiores, com experiência em teatros de guerra dos Balcãs, que já chefiaram missões da NATO na Europa de leste. E estes têm sido amplamente criticados por exprimirem essa visão distanciada que os analistas devem ter. Já foram chamados de “Putinistas”, de apoiantes da Rússia, porque não se juntam ao coro de comentadores que se limitam a condenar a invasão e a guerra, sem se explicar como se chegou aqui.
A forma mais correta de enfrentar o que está a acontecer na Ucrânia é a onda solidária que se levantou em toda a Europa, com a disponibilidade de vários países para receberem os muitos, imensos, refugiados que fogem à guerra, com as campanhas de recolha de mantimentos e medicamentos. Mas se isso tem sido matéria de enorme regozijo, revela também que há refugiados de primeira e de segunda. Porque não vimos a mesma disponibilidade para acolher refugiados de outros conflitos, como os da guerra da Síria ou da situação do Afeganistão. E não vemos nenhuma disponibilidade para o acolhimento dos refugiados de conflitos na África subsaariana que todos os dias sofrem, e muitos morrem, a atravessar o Mediterrâneo. Polónia e Hungria, integrantes do Grupo de Visegrado (juntamente com Rep. Checa e Eslováquia) têm repetidamente renunciado às políticas da União Europeia para o acolhimento de refugiados. Como agora têm recebido inúmeros ucranianos, pode ser que alterem a sua política de acolhimento.
O que Putin tem conseguido com este conflito é o renascimento da NATO. Esta organização político-militar tem visto a sua existência ser muito questionada desde que, há 30 anos, o Pacto de Varsóvia desapareceu. Com a invasão da Ucrânia, Putin permite que os defensores do complexo militar Europa-EUA tenham justificação para o aumento dos orçamentos para a Defesa. Mas Putin e a sua ação beligerante também é responsável pela emergência de um presidente da Ucrânia que ninguém conhecia, oriundo do mundo do espetáculo, e que tem sabido comunicar como uma figura da televisão, diariamente, estando na frente de combate, transformando-se num herói medieval, que está à frente das suas tropas. O palco que a Europa e o Reino Unido, com intervenções em direto nos Parlamentos Europeu e Britânico, lhe têm dado, permite-lhe fazer exigências, como o pedido, quase ultimato, para que a NATO feche o espaço aéreo da Ucrânia. Ora Zelensky sabe que tal desejo é impossível, uma vez que a Ucrânia não integra a NATO. Para tal acontecer haveria a necessidade de colocar material bélico da NATO na Ucrânia, o que poderia justificar a utilização de armamento nuclear por parte da Rússia. É cruel analisar assim a situação, mas é a única forma de o fazer no atual contexto sociopolítico e geoestratégico e Zelensky sabe-o bem.
O que fica também patente em toda esta situação é a atitude xenófoba que as autoridades ucranianas têm mostrado nas fronteiras, dificultando ou não autorizando que estrangeiros abandonem o país. Já houve portugueses que sentiram isso, tal como cidadãos oriundos de outros países.
Lamentável tem sido a cultura de cancelamento a tudo o que é russo e a toda a gente que tirou fotografias com Putin. Tem havido até episódios absurdos, como o cancelamento de concertos porque os maestros eram russos ou porque as orquestras iriam tocar obras de Tchaikovsky. Parece que quem não gritar que condena Putin e detesta russos não é uma pessoa digna. Deve só lembrar-se que o povo russo são mais de 150 milhões de pessoas, que sofrem também com a oligarquia que governa o Kremlin.
A análise a este conflito continuará, porque esta guerra deixará marcas terríveis entre a população ucraniana, que a está a viver e a sofrer. Mas também em todo o equilíbrio geopolítico europeu. O que é absurdo, o que é trágico, é a diplomacia não ter sido capaz, ou não ter querido, resolver o conflito latente há vários anos nestas latitudes, e tenha deixado imolar o desgraçado povo ucraniano.◄
- Publicado no Jornal PALAVRA, edição de março 2022
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