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Considerações sobre a doença de Alzheimer

No próximo dia 21 de setembro, comemora-se o Dia Mundial da Doença de Alzheimer, uma doença neurodegenerativa, sem cura, progressiva e irreversível associada ao avanço da idade que afeta tanto mulheres como homens. O nome desta doença é atribuído ao médico alemão Alois Alzheimer que, na primeira década do séc. XX, descreveu pela primeira vez a doença caraterizada pela perda progressiva das funções cognitivas como pequenos esquecimentos, alterações de humor, incapacidade de realizar tarefas diárias, confusão mental, desorientação no tempo e no espaço… até à total dependência.
Por norma, todos temos um livro, uma música, uma pintura, uma escultura, um filme, … que marcam a nossa vida. O filme da minha vida é o “Silêncio dos Inocentes” numa interpretação fabulosa, de apenas 17 minutos, do meu ator preferido, o gales Anthony Hopkins, a qual lhe permitiu ganhar o oscar de melhor ator, em 1991. Trinta anos depois, com 83 anos, Hopkins voltou a receber o mesmo prémio, com o filme “The Father – O Pai” que retrata esta problemática doença. Um grande filme produzido com pouco. Florian Zeller autor da peça de teatro com o mesmo nome – Le Pére – que deu origem ao filme, dirige apenas seis atores num cenário que se resume a um apartamento em Paris, mas é a grandiosidade dos diálogos que obrigam a uma atenção redobrada do espetador para perceber o que é real e o que é o pensamento do portador da demência. O filme exige ser visto mais que uma vez num brilhante papel de Hopkins cuja personagem do filme se chama, curiosamente, Anthony!
Em tempo de pandemia, escrevi um texto ficcionado para um dos muitos concursos de escrita criativa divulgados pelo Pedro Chagas Freitas nas redes sociais. Na verdade, foi inspirado na minha mãe e em todas as pessoas que padecem desta incurável doença, o qual partia da seguinte premissa, “Escreva uma história, com não mais do que 400 palavras, em que alguém carregue num botão” e que passo a transcrever…
“Carrego no botão do tempo que não funciona e me rouba a esperança. Quero voltar ao passado para mudar o presente, mas, obviamente, impossível. A vida é assim, esgota-nos. Espreme-nos as células neurais que se encarregam de apagar a nossa estória. Há dois anos que visito a minha mãe no lar e sempre soube que o acontecimento de hoje era previsível. O esperado, dói, mas não choca. A doença não lhe deu tréguas. De olhar fixo, toca-me o rosto como se dum menino se tratasse, solta quase um sorriso e pergunta-me quem sou eu. Digo-lhe que sou o seu filho, demora a responder-me e diz-me que não tem filhos, que nunca teve filhos. Di-lo convicta e, simultaneamente, distante. O coração bate mais forte e dói-me por dentro, disfarço e aguento. Carrego no botão da lembrança, mostro-lhe uma fotografia nossa e nada. Mostro-lhe outra fotografia onde estamos juntos, há trinta anos atrás e nada. Insisto em mil episódios de que ela não se lembra. Confirmo o esgotamento pleno de quem perdeu irreversivelmente a memória. Carrego no botão da compreensão, aguento o seu esquecimento como se nada fosse porque não a quero magoar. Pego-lhe nas mãos e amacio-lhe as rugas que a idade construiu paulatinamente. Sorrio-lhe com ternura. Passo-lhe a mão pela suavidade fina do seu cabelo cã. Beijo-lhe a testa tépida demoradamente e despejo uma lágrima de mim escondida. Sobeja um corpo sentado, inerte no espaço e perdido no tempo, mas vale sempre a pena estar aqui. Carrego no botão do conforto, sossego-me e fico imóvel. Abraçados, neste doloroso silêncio, aconchego todo o meu amor por ela.
Espreito o relógio de parede que junta os ponteiros, são quatro horas e vinte e três minutos depois do meio-dia. Faltam sete minutos para acalmar a infinitude dor da impotência. A visita aproxima-se do seu término. Chega a enfermeira de serviço que me consola, que me pede paciência. Carrego no botão do conformismo, despeço-me como se fosse a última despedida do ser que me gerou e que não me conhece mais. Carrego no botão da tristeza, interiorizo o chiar da cadeira de rodas que se afasta, aceno para o vazio, fico só, com os meus botões.
Abandono o local. Piso as calçadas das ruas movimentadas da cidade, sem ver ninguém. Levo uma eternidade até casa. Ausente, fecho a porta, exala um incómodo cheiro a gás e, esquecido, carrego no botão do interruptor da luz.”
Estaremos a enlouquecer com o prolongamento da nossa vida?! Infelizmente sim, é um facto. Segundo, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima-se que em todo o mundo existam 47,5 milhões de pessoas com demência, prevendo-se atingir os 75,6 milhões em 2030 e os 135,5 milhões em 2050. Atualmente, em Portugal estão diagnosticadas com demência aprox. 200 mil pessoas, com previsão de mais de 230 mil já em 2025 e 347 mil em 2050. É bom reter que a doença de Alzheimer representa entre 60 a 70% de todos os casos de demência.
Curiosamente, e segundo a ciência, o nosso cérebro envelhece precocemente, uma vez que começamos a perder faculdades ainda antes dos 40 anos. Outra curiosidade cientificamente comprovada, revela que durante toda a nossa existência, não somos capazes de reconhecer mais de 1000 pessoas, ou seja, significa na prática que uma pessoa que viva toda a vida no nosso concelho só é capaz de identificar 10% dos seus concidadãos! Interessante e, simultaneamente, intrigante demonstrando o quão limitado somos.
Antes de terminar, no dia 26 de setembro, irão realizar-se as eleições autárquicas e, sem tecer quaisquer considerações sobre os possíveis eleitos, espero que os reguenguenses usufruam do seu direito ao voto! Se nestas eleições reduzirmos os votos nulos e a taxa de abstenção, para mim já será uma vitória da vida democrática local. Sinto mágoa da minha mãe não poder votar porque a doença lhe tem roubado a noção do tempo, a memória e a consciência!
Termino temendo o dia em que a minha mãe deixará de me reconhecer, mas temo mais ainda o dia em que ela se deixará de reconhecer a si mesma. A doença de Alzheimer é para ser entendida, é preciso divulgada para que os doentes possam viver e morrer com respeito e dignidade. Um ótimo e feliz dia para todos! ◄

  • Publicado no Jornal PALAVRA, edição de setembro de 2021

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