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Cumprir caminhos

Quando finalmente o sol despejou um jorro de claridade na escuridão da noite, já a rapariga percorria há muito, os caminhos. Calcorreava veredas, investia matagais, cumpria pedaços de chão, como quem morde côdeas de pão duro. Como quem morde a vida por vingança.
– Estava ao alcance da mão…mesmo, mesmo aqui… e agora tenho que acelerar o passo… não posso fraquejar! Não agora!
Pedras pequenas e finas como dentes de leite, vermelhavam à sua passagem, e o que estava morto e seco, levantava-se de jubilo pelas suas feridas.
– Parava só um bocadinho… se pudesse… mas não posso…se parar agora… é o fim… e eu não quero que o fim seja isto, assim, no meio do nada, só embalada pelo resfolegar das cobras nestas pedras tristes….
O fim de um caminho, era sempre o começo de outro, e, depois de uma vereda estreita, vinha sempre outra ainda mais estreita, e os espinhos do mato, feriam cada vez mais fundo, as suas pernas, e os dentes de leite no chão, erguiam-se a cada sopro de vento, mais alto, e eram já presas de um qualquer carnívoro no recobro de um parto…e o caminho só cumpria o dia a seguir à noite, e a noite a seguir ao dia, numa sucessão desoladora de sol e de lua.
– Ardem-me já os olhos, e o peito…arde-me tanto o peito…é o desejo que arde que eu sei que é… mas já falta pouco…
Mil noites e mil dias depois, os caminhos acalmaram, as veredas amansaram, o mato descansou, e a rapariga podia até respirar fundo e deixar cair o cansaço de promessas cumpridas…. mas o peito ardia ainda e cada vez mais fundo.
É um fogo posto pelo andar desvairado de mil dias e mil noites.◄

  • Publicado no Jornal PALAVRA, edição maio 2022

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