Portugal perdeu a denominação de ‘democracia plena’ e foi classificado como ‘democracia com falhas’. Quem o diz é a revista The Economist, que anualmente publica o índice de democracia a nível mundial. O estudo refere que a pandemia, com os sucessivos Estados de Emergência, teve um papel importante nesta desclassificação, mas adianta que a pandemia, só por si, não explica tudo. E de facto, não explica. Apesar de 26º a nível mundial, quem conhece o país real, o país profundo, o interior do país, as instituições de poder, os organismos estatais, as repartições, secções e serviços dos mais diversos setores, debate-se demasiadas vezes com os limites da democracia.
Os sinais de imaturidade democrática estão à vista e é também visível, da parte dos cidadãos, um descontentamento comodista semelhante ao do tempo da ditadura, mas de contornos mais subtis.
Sinais claros são a falta de transparência, o abuso do poder, a relação difícil com a verdade e com a crítica, a falta de liberdade e de responsabilidade ao mais alto nível, para não falar de incompetência em muitos lugares de decisão. Quem tem que se relacionar com as instâncias do poder percebe que nos últimos tempos se agravaram as falhas da democracia e revelou-se ainda mais gritante a incapacidade reativa e a incompetência do Estado.
Um dos primeiros indícios é a falta de clareza na comunicação já denunciada por especialistas de diversas áreas e muito falada nos meios de comunicação social. Em parte, esta dificuldade resulta do medo de apresentar a verdade aos portugueses, já aqui o dissemos, mas também da vontade de ficar bem nas diversas perspetivas da “fotografia” como se todos os perfis fossem intocáveis. O resultado tem sido sempre desastroso. Falta a capacidade de comunicar de forma clara, simples, inequívoca, direta, frontal e comprometida.
Vejamos o caso do Serviço Nacional de Saúde que tem conseguido superar-se na resposta à covid, mas à custa do desgaste de todos os profissionais de saúde e principalmente graças à competência de médicos e enfermeiros. Porque a tão necessária avaliação, previsão, programação e organização têm falhado e tem levado a más decisões por parte dos responsáveis políticos. É evidente que ninguém em lado nenhum deste mundo estava preparado para lidar com uma situação pandémica, mas também é verdade que outros decisores souberam aprender, a tempo, que más decisões e decisões tardias têm consequências. Consequências sérias, diárias e infelizmente, fatais.
São sinais de fragilidade, como estes, que revelam uma democracia imatura, pouco consistente, não consolidada e impreparada para responder aos grandes desafios do bem comum, neste caso acerca do bem mais precioso, a saúde.
Mas há outros sinais evidentes, como por exemplo a desresponsabilização geral. É muito frequente os cidadãos e mesmo instituições, associações e empresas, terem que encontrar soluções, sem a consciência de que estão a incorrer em ilegalidade, por não haver orientações suficientemente claras e precisas ou respostas adequadas às perguntas importantes.
É comum, quando pedimos esclarecimentos, recebermos como resposta “não sei”, “faça como entender”, “não lhe posso dar essa informação”, ou então, “eu vou-lhe dizer, mas faça de conta que não sabe”, “não diga que eu lhe disse”, “se lhe perguntarem faça-se de parvo”, “finja que não sabe”, ou ainda, “tem razão, mas eu não posso fazer nada”, “concordo consigo, mas não lhe posso dar essa informação oficialmente”, e não falemos daquelas situações em que cada um dá uma resposta diferente. E, quando conseguimos finalmente uma resposta coerente e nos atrevemos a pedir que a coloquem por escrito, é certo que nos dizem “não estou autorizado a fazê-lo”.
É a democracia da irresponsabilidade. Ou não dizem nada ou fica tudo ao livre arbítrio e ninguém se responsabiliza. Não admira, pois, que se tenha levantado a confusão em muitos momentos da pandemia, primeiro as máscaras, depois os transportes, os passeios higiénicos, o teletrabalho, as Escolas e recentemente as vacinas, para referir apenas alguns. Por isso, não nos estranha que os responsáveis, sabendo que é assim que funciona, nada tenham feito para impedir este pântano. Neste último exemplo, por ser o mais recente, não informando de forma clara todos os cidadãos e não informando aqueles que tinham a responsabilidade de definir critérios, fazer as listas, de avaliar as listas e os que posteriormente iam aplicar as vacinas. Resultado!? Instalou-se a anarquia. Esta anarquia e a já referida imaturidade democrática manifestaram-se na sua triste plenitude na polémica da Assembleia da República a decidir quem são os políticos prioritários a vacinar. Será a democracia da irresponsabilidade ou simplesmente a irresponsabilidade da democracia?
Mas, no que respeita a falhas da democracia ainda há mais. Nota-se uma falta de autonomia das estruturas e das instâncias e, sobretudo das pessoas. Uma falta de liberdade de ação. Uma difícil convivência com a crítica e com a verdade. É por isso que não se desenvolvem competências nem se transformam as instituições.
Impera, em demasiados ambientes, a subserviência de uns em relação a outros e a intolerância perante as competências dos subalternos com medo que lhes tirem o lugar ou ponham em causa algumas decisões superiores.
Em muitos organismos só um pode pensar, falar, decidir, aparecer e quando esse não fala acontece a inação, a não resposta, o vazio absurdo. O medo de que outros pensem, falem e apareçam é tão desmedido que se proíbe terminantemente que outrem dê informações ou preste declarações ou tenha visibilidade, mesmo que seja no estrito cumprimento das suas funções. Tudo tem que ir à mesa de quem detém o poder.
Situações como esta, que deixa muito seguro e tranquilo quem na cadeira do poder se instala, acaba sempre em subversão. Nada pior para um país, um governo, um organismo ou uma instituição do que optar por fechar o poder a sete chaves em vez de optar pela transparência, partilha de poder e autonomia dos colaboradores. É preferível que alguém diga e tenha que se desdizer a seguir do que chegar à triste conclusão que os esforços realizados para guardar a informação foram logrados e esta escapou-se em papelinhos por debaixo da porta, ou naquele tão usual “não digas nada” ou “não digas que eu disse”. É a falta de liberdade e o medo.
A situação agrava-se ainda mais quando se trata da comunicação social. Tenta-se esconder ao máximo e às vezes coisas insignificantes, porque quem manda não quer que se saiba ou não deixa ninguém falar ou porque a matéria vai ser entregue a determinados órgãos de comunicação social escolhidos a dedo para satisfação própria, porque são especialistas a fazer “copy paste” o que é sempre mais cómodo para as falhas da democracia. De resto é comum ouvir-se como resposta “desculpe, mas essas perguntas têm que as enviar para…” e ninguém se apercebe do ridículo.
Mas há uma outra falha da democracia que é muito usada. Podemos chamar-lhe nostalgia da infância ou síndrome de infantilidade, se é que tudo o que está dito atrás não é isso mesmo, uma tremenda infantilidade! É a atitude do “queixinhas” que conhecemos dos tempos de escola. Não se pode dizer ou fazer nada que vão logo fazer queixinha à senhora professora.
E é também a infantilidade daqueles que não são capazes de assumir a responsabilidade do que fazem. Gostam de meter os outros todos ao barulho para tentar sair ilesos, escapar aos olhares críticos e à censura. Começam por dizer, “não fui eu” e acabam a dizer “não fui só eu” e, no final, o castigo recai sempre em cima do menos culpado ou até inocente, tantas vezes aliciado a prevaricar por isso, por ser o mais fraco, para haver bode expiatório.
Não é mais que uma tentativa de multiplicar os culpados para diminuir a culpa e o castigo. Alguns são até capazes de elaborar listas muito pormenorizadas de supostos responsáveis, julgando-se os únicos espertos.
Depois há ainda aqueles que têm as costas quentes porque “o meu pai é que manda nisto”. Aqueles que pensam que são filhos do sistema e como tal, são donos do mundo e podem sempre fazer o que querem sem ter que se justificar diante de ninguém. E quando os obrigam a justificar-se ficam muito indignados perante tal descaramento.
Com quase cinquenta anos de existência, a democracia portuguesa revela-se uma democracia com falhas, imatura e pouco ágil, o que de facto, em boa verdade, ninguém diria. Deve ser o olhar de quem vê de fora, como a revista The Economist, e não de quem vive em Portugal.◄
- Publicado no jornal PALAVRA edição de fevereiro 2021
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