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Editorial Julho 2021

Uma senhora de 90 anos ao ver as últimas notícias na televisão desabafava dizendo “como podem eles roubar tanto? Não têm vergonha?” Alguém sentado a seu lado respondia “têm vergonha, mas não a usam”.
José Sócrates, Ricardo Salgado, Joe Berardo, Luís Filipe Vieira, muitos outros como estes e todos os que vivem à sombra destes, são aquilo que um país não pode permitir, mas são o resultado da cultura de um país. Portugal cultiva este tipo de pessoas, gosta delas, cuida delas, e acolhe-as com elogios, admiração, condecorações, relatos das suas vidas em longas páginas de jornais, revistas e programas televisivos. São conselheiros, amigos e protetores de governos, de políticos, de autarcas, de empresários, de universidades, de clubes de futebol, de fundações, de museus e de bancos. São aconselhados e protegidos por governos, políticos, autarcas, empresários, universidades, clubes de futebol, fundações, museus e bancos.
Portugal cultiva estas pessoas, cultivando uma admiração por quem se apresenta de fato e gravata, a falar alto, como quem tem autoridade, como quem sabe para dar lições, como quem tem sabedoria e experiência de feitos grandiosos que os colocaram nos píncaros da economia mundial, que mais não é do que charlatanice.
Para os portugueses, um fato elegante, um carro lustroso de gama alta, conversa barata, sorriso nos lábios, simpatia a rodos, arrogância dissimulada, soluções fáceis, promessas irrealistas, ofertas grandiosas, são o suficiente e os ingredientes indispensáveis para se deixar convencer e roubar.
Portugal gosta deles e senta-os à mesa dos grandes eventos, coloca-os nos primeiros lugares das listas de convidados, das comissões de honra, nos cortejos das personalidades, no lugar dos intocáveis e escolhe-os para padrinhos de todas as grandes obras, empreendimentos e projetos.
São tudo pessoas boas, que amam muito o país, que dão a vida pelo governo, pelo partido, pela autarquia, pelo clube, pela empresa, pelo banco. São gente altruísta, mecenas, benfeitores, angariadores de donativos. São todos bons pais de família, bons filhos, irrepreensíveis cidadãos e sem cadastro. São todos pessoas de fiar.
Quando se percebe enganado, Portugal começa por não acreditar que é verdade. As notícias são um exagero e no fim vai-se provar que foi uma cabala. Depois protege com o segredo de justiça e com o direito de bom nome e de inocência até prova em contrário. A seguir tem pena, “coitado, era tão boa pessoa, teve um deslize…” e chora ao vê-los entrar na prisão. Nos entretantos, muitos portugueses começam a bater palmas porque se encontrou um vigarista e fazem festa como se não houvesse mais vigaristas para apanhar. Ainda assim, um grande número faz manifestações à porta da prisão a pedir que os libertem porque não merecem.
Os demais, aqueles com quem se sentavam à mesa, ficam à espreita a ver no que dá e a tentar que não se fale deles e das amizades que tinham. O medo assalta-os em todas as frentes. Sabem que têm que ir visitar o amigo à prisão e dar-lhe apoio, mas não podem permitir que os confundam no mesmo processo. Procuram uma escapadinha para ir à cadeia na esperança de não serem vistos e procuram a argumentação necessária para uma resposta rápida se aparecer algum jornalista: “vamos deixar a justiça trabalhar”, “agora é o tempo da justiça”, “neste momento não é adequado estar a falar quando está tudo no segredo de justiça”, “a política não deve substituir a justiça”.
Se os ligam de alguma forma aos acusados escusam-se com palavras dúbias e argumentos vazios de sentido. São amigos, mas não sabiam o que se passava. Protegeram e apoiaram, mas não tinham noção das negociatas. Receberam favores, mas nunca suspeitaram.
“Não sabia”, “não tinha noção”, “não fazia ideia”, “se soubesse naquela altura…”, “foi há um ano… hoje, se soubesse o que sei, teria sido diferente…”.
E com estas escusas vão tentando rasgar as fotos de família em que sempre quiseram aparecer.
Não sabiam?
Aprender? Não! Portugal não aprende a lição e vai continuar a deixar-se enganar porque muitos, mercê das artimanhas dos malfeitores, da complicação dos processos, da falta de meios para a investigação e da lentidão da justiça, acreditam conseguir safar-se. Mas também não aprende porque a sedução por figuras emblemáticas é maior do que o gosto pela verdade, pela transparência, pela lisura e, sobretudo, é maior que o bem comum, o bem dos portugueses.
Os esquemas fraudulentos não acabam, porque muitos conhecem ou julgam conhecer a arte da sedução, julgam-se mais inteligentes do que o sistema e, como vão tendo alguns exemplos de gente que escapa à justiça, entendem que compensa tentar a sorte e seguir por este caminho dos amiguismos políticos, que vai dar ao corredor da fama e que, posteriormente, os conduz diretamente a sala dos intocáveis. Mesmo que seja por pouco tempo sempre vale a pena e nunca se sabe onde está a sorte.
Portugal não aprende porque prefere acreditar e deixar-se enganar do que investir em sistemas eficazes de fiscalização. Inventam-se plataformas de transparência que não servem literalmente para nada a não ser para facilitar os esquemas de vigarice. Antes e depois das plataformas de transparência continuam a montar-se esquemas, e com tal subtilidade, que é difícil até aos mais avisados perceber que estão a ser enganados. Montam-se verdadeiras armadilhas com o intuito de nos meter a mão nos bolsos ou para comprar o silêncio dos incautos.
O pior de tudo é que estes que vão sendo conhecidos mediaticamente, não são os únicos. Os trepadores sociais começam cá em baixo e mais do que fama querem poder e querem poder para terem dinheiro, ou melhor, querem fama para poderem ter poder para esconderem dinheiro.
Portugal tem ainda um longo caminho a percorrer para chegar à transparência, e isso não é só responsabilidade dos políticos. Pelo contrário, é responsabilidade dos cidadãos que escolhem os políticos e das motivações que os levam a escolher este e rejeitar aquele político, na hora da decisão. Muitas vezes a corrupção começa ali quando se escolhe este governante na esperança de obter aquele favor e isso é já corrupção, é já querer trepar, é já desejo de subir no corredor da fama para a sala dos protegidos. Nem sempre se tem êxito, mas começa aqui.◄

  • Publicado no Jornal PALAVRA, edição de julho 2021

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