As paredes eram estranhas. De um branco escorrido sem graça. Temeu pela sua solidão. Se ficar aqui uma semana já não seremos desconhecidas. Abriu a janela de sacada que dava para a rua movimentada da cidade grande. A cidade era atrevida, cheia de barulho a entrar por todas as frestas do apartamento acanhado. Uma aragem com cheiro de alcatrão e gasolina queimada entrou-lhe pelas narinas e despenteou-a mal se debruçou para ver o trânsito. O final da tarde dava uma pontada de nostalgia, um quê de regresso a casa. Antecipava o abraço, o cheiro a comida quente vindo da cozinha, o casulo da cama. Passou o dedo indicador pela mesa de vidro escurecido, e deixou um rasto de brilho. Amanhã tratamos disto também. Do pó, das paredes, das janelas, da vida. A sala desembocava numa cozinha minúscula e num corredor estreito que levava ao único quarto da casa. No quarto uma janela pequena dava para uma ruela estreita e quieta. Um gato vadio explorava o contentor do lixo. Sentiu imediata empatia por aquele ser escanzelado. Este 2º andar era o seu contentor do lixo, a sua sobrevivência para ver a luz de mais um dia. Sorriu com o dramatismo deste pensamento. Amanhã se ainda ali estiver vou buscá-lo, pensou a olhar para o bichano antes de fechar a janela. Estava a arrefecer. A proximidade do mar deixava um véu de humidade mal o sol desaparecia por detrás dos prédios altos. E se o dia era manso mesmo em fevereiro, a noite adivinhava-se fria. Ou então era dela que vinha o frio. Porque as janelas estavam fechadas, o aquecimento central apesar de antiquado estava ligado e as mãos continuavam geladas. Sentou-se na beira da cama. Pedia uma pizza ou ia dormir? Dormir era mais fácil e dava menos trabalho. Conciliar o sono não era, no entanto, tarefa fácil. Andava meio adormecida durante o dia, num estado de dormência que lhe trazia à memória as tardes quentes de agosto na sua terra, em outra vida, num outro corpo. A noite era infinita, habitada de palavras atiradas às paredes do quarto. Um burburinho de vozes inquietas que não davam descanso senão quando a manhã se insinuava pelo vidro da janela.
Amanhã compro comprimidos para dormir. Preciso de arrumar tudo bem arrumado para encarar a cidade. Começo pelas roupas, as louças, o pó, a minha vida e por fim aqueço um pouco este frio que trago dentro. Adormeceu madrugada acima embalada pela lista de afazeres.
Acordou devagar. Era só outra cidade, atarefada, ruidosa como todas são, esta com mais luz é certo, mas era outra cidade. E ela mais uma vez tinha vindo acompanhada pela sua solidão, porque nunca lhe tinham pedido que ficasse. Se tinha medo? Não tinha. Tinha pena. Se tivessem pedido talvez tivesse ficado. Na terra, na cidade de ontem. Podia partilhar o vazio, curar o frio e quem sabe calar as noites.
Pulou da cama determinada. Sacudiu a cabeça e limpou a melancolia que teimava em cair-lhe pelos cabelos. Hoje era dia. Desculpar aquele apartamento feio, amar a cidade nova, aquecer as mãos e aceitar o ar saturado de fumo e lixo. E agora por lixo. Calçou os sapatos e saiu porta fora. – Vou buscar o gato. Precisamos um do outro. Vou pedir-lhe que fique.◄
- Publicado no Jornal PALAVRA, edição de fevereiro 2021
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