Apesar de toda a narrativa dos setores de direita do espetro político português clamarem que vivemos uma ditadura de esquerda, de se queixarem permanentemente de todas e quaisquer medidas que visem proteger os trabalhadores, apesar de termos um governo pretensamente de esquerda e alegadamente socialista, vivemos uma época de profunda refundação do capitalismo, de recuperação de ideais que acreditávamos estarem completamente ultrapassados. E parece que, com a argumentação da democracia, tudo já é legítimo, todas as manifestações, mesmo aquelas que colidem com a cidadania, o humanismo e o progresso social já são aceitáveis. Vem este arrazoado a propósito de vários acontecimentos ocorridos no espaço, e no espaço mediático, português, que ilustram e sublinham o que escrevi.
A Universidade Católica divulgou as condições de acesso ao seu novo curso de medicina, o primeiro em instituições de ensino superior privado. E o que desde logo surpreende e revolta é o custo que cada aluno terá que pagar: 16 500 euros por ano, mais 1500 euros de inscrição o que, contando os seis anos de duração, significa cerca de 100 000 euros. Nas faculdades de medicina do ensino público um curso custa, em propinas, 4200 euros. Para os defensores da iniciativa privada, da tão apregoada liberdade de escolha entre público e privado, qual será a explicação? Dir-me-ão, e é verdade, que o curso de medicina é, provavelmente, um dos que implica maior investimento. Mas, se é assim, que interesse tem a Universidade Católica em promover tal curso quando até a Ordem dos Médicos nunca se mostrou favorável à sua existência? É apenas negócio e vontade de elitizar ainda mais a atividade médica? E, última questão, quem poderá suportar tais custos? Espero que a Católica não venha com argumentos falaciosos da igualdade de oportunidades e do mérito, porque a única razão que irá selecionar os alunos será a capacidade financeira das famílias.
Continuam as audições aos grandes devedores do Novo Banco, numa Comissão Parlamentar de Inquérito que tem assistido a episódios degradantes da vida de uma sociedade democrática. O depoimento de Bernardo Moniz da Maia, por exemplo, foi asqueroso. A figura que o inquirido fez foi degradante! O impressionante foi a pouca cobertura que a comunicação social fez do assunto e, não fora a referência feita por Ricardo Araújo Pereira no seu programa humorístico, e teria passado completamente despercebido. Ora Bernardo Moniz da Maia, personalidade conhecida e de referência no meio financeiro, mas também na esfera social do “beautiful people” gozou com todos os portugueses, deputados presentes incluídos, passando completamente impune, apesar de toda a arrogância e desfaçatez e, porque não dizê-lo, falta de vergonha que demonstrou Por ele e outros como ele, continua o Estado Português a injetar milhares de milhões de euros no Novo Banco. Porque, de acordo com os cânones capitalistas, quando as entidades bancárias têm lucros, distribuem-se pelos respetivos acionistas. Quando têm prejuízo recorrem a todos os mecanismos do Estado para a injeção de capital, com receio do “risco sistémico”. E com tudo isto assistimos, pachorrentamente, a uma venda “sui generis” do Novo Banco ao consórcio americano “Lone Star” no qual o vendedor (o Estado Português) fica a pagar ao comprador (a “Lone Star”) até a entidade vendida (o Novo Banco) ser autosuficiente, se isso alguma vez vier a acontecer. Não contentes com tamanha benesse, a administração do “Novo Banco” resolveu auto presentear-se com um prémio de gestão, depois de ter declarado prejuízos de mais de mil e trezentos milhões de euros, da ordem de um milhão, oitocentos e sessenta mil euros. É o capitalismo selvagem no seu melhor!

A pandemia que tem coagido a nossa vida nos últimos 15 meses, veio lembrar uma situação de todos conhecida, mas por quase todos ignorada – as condições infrahumanas em que vivem imigrantes asiáticos, recrutados para trabalhar em estufas de frutas e legumes no concelho de Odemira. Há muito que esta realidade existe, que seres humanos são explorados, quase em condições de escravidão, para permitirem lucros importantes aos empresários que exportam quase toda a produção. Apesar de denúncias de vários órgãos de comunicação social e de organizações não governamentais, feitas na última meia dúzia de anos, as autoridades públicas portuguesas nunca se preocuparam. É claro que as condições degradantes em que milhares destes migrantes vivem proporcionaram terreno fértil para a propagação do vírus pandémico. Foi quanto bastou para o governo e outras entidades públicas se recordarem do problema. E como a resolução do problema foi entregue ao ministro da administração interna Eduardo Cabrita, a forma foi caótica. O anúncio da requisição civil de um empreendimento turístico, sem as devidas e claras explicações gerou um tumulto por parte dos proprietários, onde os exageros foram tão lamentáveis, exagerados e extemporâneos, como os argumentos do ministro Cabrita. Falou-se em desrespeito pela propriedade privada, no PREC de 1975, arranjaram-se argumentos xenófobos quando, afinal, se pretendia ocupar espaços que estão em insolvência, numa dívida de 60 milhões de euros ao Estado. O que estes episódios permitiram concluir foi que, apesar do desrespeito com que são tratados, os imigrantes são fundamentais para a nossa economia. Num país com os problemas demográficos que Portugal enfrenta, perdendo população todos os anos e com um envelhecimento muito preocupante, deveríamos receber os imigrantes com a consciência que lhes deveriam ser concedidos os direitos humanos devidos a cada cidadão. Onde estão agora aqueles que tanto têm protestado contra os imigrantes? Só agora terão percebido que o capitalismo que tanto defendem necessita destas pessoas para fazerem o trabalho que os europeus se recusam a fazer pelo preço que recebem? Todo este processo tresanda, uma vez que já não é novidade para ninguém que há redes clandestinas de tráfico humano por detrás destes movimentos de pessoas, que a Autoridade das Condições de Trabalho nunca inspecionou convenientemente esta realidade. E outro aspeto que, por falta de espaço já não analisarei, guardando para oportunidade futura, é a realidade de se permitir a instalação de quilómetros e quilómetros quadrados estufas num parque natural, para o caso o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e da Costa Vicentina. Quando continuamos a sacrificar o ambiente, pensando exclusivamente no lucro, estamos a ignorar o estado de calamidade climática em que o nosso planeta se encontra.◄
- Publicado no Jornal PALAVRA, edição de maio 2021


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