Antes que me corrijam, bem sei – é provavelmente impossível, do ponto de vista biológico, sentir dores de crescimento quase nos trinta (apesar de, em bom rigor, estar a sentir agora uma particular agonia só de verbalizar esta realidade). Mas aqui estamos – quase nos trinta e a conhecer dores que ainda não tinham arriscado bater-me à porta: a tensão nos ombros e pescoço da má postura crónica; os estalos do maxilar das ânsias acumuladas ao longo da semana; a confirmação de que inconscientemente autodetermino o meu valor com exclusiva base nos meus resultados laborais (esta última a mais dolorosa, e nenhuma dosagem legalmente permitida de ibuprofeno tem atenuado as queixas).
Começando pelo princípio. Fui rejeitada para um trabalho que queria muito. Antes que me corrijam, bem sei – não há nada mais cronicamente egoísta do que escrever uma peça sobre si mesmo. Por outro lado, não chamamos diário de bordo a este nosso cantinho por motivo nenhum, certo? Prometo-vos, caros, que haverá algures algum ensinamento que se possa levar desta entrada, ainda que chegue embrulhado num pouco de autocomiseração e egocentrismo. Avante.
O cenário foi este: fui rejeitada para um posto de trabalho que queria muito. Esforcei-me para agradar, ele combinava comigo. Fiz tudo o que se esperava que fizesse. Podendo, levá-lo-ia a jantar e oferecer-lhe-ia flores no fim da noite. Bem que correram as primeiras impressões, pediu-me o número de telefone – disse que voltava a falar. E depois: rejeição! Qual encontro que afinal correu menos bem, qual relação que antes de começar já tinha acabado. No meu coração, já havia um role de expetativas e sonhos e futuros vários, o “não” uma realidade impensável à qual não dei, portanto, nem dois segundos de atenção.
Ora, o “não” chegou, e não me caiu bem.
Primeiro, porque não o quis processar logo, como se fosse, no limite, uma meia-verdade, algo ainda por se concretizar, não totalmente materializado, desde que se ignorasse. Depois, porque aconchegou-se em mim uma convicção sombria: de que esta rejeição era uma representação direta de quem eu sou, do quanto eu valho, do que eu mereço. Finalmente, e para piorar, porque, racionalmente, eu sei que essa convicção é uma partida sem graça da minha cabeça e da forma como ela foi formatada a pensar: é, aliás, o género de coisa que debito constantemente, tantas vezes até neste mesmo diário de bordo!
Posto isto, o não chegou, e caiu-me muito mal.
Mas fiz o que tinha a fazer; lambi as feridas em silêncio, depois em abraços, depois em chamadas telefónicas, agora aqui. Continuo com um nó particularmente difícil de desfazer, presumo que uma dor de crescimento, tardia, sim, mas inevitável. Repito(-me) que o meu valor pouco tem a ver com o meu currículo ou posto, que o meu valor está em coisas muito mais interessantes: em acertar na quantidade de açúcar a colocar no café da pessoa que amo, em ficar acordada até à meia-noite num dia particularmente difícil para dar os parabéns a alguém, em não ter medo de amar e cuidar e mostrar aos outros que são merecedores de amor e cuidado. Há vida além do que acontece entre as 09h00 e as 17h00, repito, como uma oração. E, mesmo que não acredite sempre nisto, há dias, como hoje, em que tenho a certeza de que essa vida que acontece lá fora é imensuravelmente mais bonita. É um sim constante – mesmo com dores de crescimento. ◄
- Publicado no Jornal PALAVRA, edição de junho 2023
Mais Noticías
Um segredo
Aves
Recuperar a humanidade