É o dilema de qualquer feminista autoproclamada (provavelmente não é, mas vamos partir desse pressuposto para o efeito dramático de uma boa abertura para esta entrada), agora agravado pelo facto de que qualquer feminista autoproclamada das últimas gerações dificilmente consiga ultrapassá-lo sem esmagar o fator-nostalgia debaixo de um polegar teimoso e (meio) determinado: o novo filme da Greta Gerwig, Barbie, vai estrear nos cinemas já no final do mês. E agora?!
Os últimos anos têm combatido (e bem, olhando de determinados ângulos) o rancor a purpurinas, cor-de-rosa e stilettos; têm abraçado a barbieficação e bimboficação do feminismo, recuperando para a ribalta (será que alguma vez saíram de lá?) ícones como a Elle Woods ou a Cher Horowitz; têm sido palco, de forma massiva e diversificada, para conteúdo feminista (e “feminista”) assumidamente decorado em glitter, nem por isso menos empoderado (ou menos “empoderado”).
Ora, há traços meus que nunca mudaram com o passar dos anos: as paredes do meu quarto sempre foram cor-de-rosa, e as minhas mãos sempre divagaram para qualquer peça de roupa que brilhasse mais do que as outras. Não há dia que passe sem me maquilhar, e é improvável ter mais do que dois pares de calças (ainda mais improvável usar mais do que um). Ah – e sempre – sempre – adorei Barbies.
Claro, uma menina cresce. Uma menina que adora Barbies cresce, e ainda passa algum tempo a ler sobre a história das suas bonecas favoritas. É uma história complexa, claro, e muito pouco isenta de toxicidade; por onde apareceu, quando, como, por que motivo e para que público e com que intenção, era impossível esperar uma cronologia imaculada – e igualmente impossível, se formos sérios, ignorar o peso das problemáticas que a Barbie trouxe, e ainda traz, para cima da mesa. E, como em tudo na máquina altamente eficaz que todos mantemos a rodar, a desconstrução de qualquer problemática é, hoje em dia, mais uma jogada de marketing do que um passo importante na direção certa – a Barbie hoje (e tal é reforçado pelas bonecas na montra, como já sabemos que será pelo filme que estreará em breve) pode ser (mais do que nunca) quem quiser, e como quiser, e ser ainda assim, aberta e orgulhosamente, Barbie. Gorda, magra, branca, racializada, médica, cantora. Desde que bonita, e desde que para venda, e desde que icónica para as meninas saberem que meninas ser.
Há traços meus que nunca mudaram com o passar dos anos. Quer isto dizer que estarei na estreia do filme da Barbie, e falarei dele com entusiasmo e gosto, e vou dar-lhe cinco estrelas de avaliação na minha conta do letterboxd (é mesmo muito provável), e não vou por um segundo ignorar as coisas boas que a história da Barbie (e a própria Barbie, no filme ou fora dele) fez por tantas meninas e mulheres.
Mas, e porque a duas semanas da estreia, a internet transborda com publicações simplistas sobre o feminismo inquestionável (“inquestionável”) da boneca mais famosa do mundo, estarei também de pé atrás com o discurso que, como em tudo na máquina altamente eficaz que todos mantemos a rodar, insiste em tentar descomplicar o que é complexo. ◄
- Publicado no Jornal PALAVRA, edição de julho 2023
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