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(In)fusão

A hora do chá era um ritual repetido dia após dia, no mesmo horário.
Sentavam-se frente a frente, os olhos baixos, postos nas chávenas de porcelana. Há muito tempo que não olhavam.
Estava tudo dito entre as duas. Tudo havia já sido vasculhado, remexido. Não havia um centímetro da vida de uma, que a outra não tivesse já violado.
Chá preto, bem forte, às segundas e quintas, chá de Tília às terças e sextas, de Camomila às quartas, e de Rosas aos fins de semana. O mesmo calendário há mais de 50 anos, num recital de tilintares e cheiros, que tinham impregnado paredes e vestidos, pele e sentidos, de uma forma opaca e irreversível.
Não sabiam ao certo como tinham ido ali parar. Os dias empilharam-se até serem anos e em volta a vida esmoreceu ao ponto de ser impossível distinguir as molduras com fotografias antigas e a realidade.
Não eram nada uma à outra. Não havia laços de sangue a uni-las, aliás não havia laços nenhuns a uni-las.
Cinco décadas, meio século de fios de seda que as mantinham presas naquela mesma casa, numa coabitação de silêncios partilhados, em que cada vez mais apenas suportavam a presença da outra, como um mantra que se repetia e ecoava no bater das horas.
Tinham sido amigas de infância, mas não tinham memórias desse tempo. Crescer tinha cavado um vale de distância entre as duas.
Caminhos de angustias e solidão aos poucos aproximaram as duas, e como as fases de uma lua qualquer esvaziaram almas anos a fio.


Fizeram companhia uma à outra, falaram de tudo, esgotaram segredos, trocaram dores, levaram mágoas da outra para a cama, e devolviam-nas pela manhã já apaziguadas.
A primeira enviuvara cedo. tão cedo que nem tivera tempo de parir um filho. O homem dela morrera na guerra. Mas já não se lembrava qual nem quando nem onde nem sequer se fora na guerra. Morrera.
A outra não. A outra cansara o corpo de homens. Como alguém que debaixo de uma amoreira, colhe frutos até não poder mais porque são doces e quentes, e depois já são doces e quentes demais até não mais poder ver uma amora diante dos olhos…
Os anos correram e quase sem se darem conta, a indiferença insinuou-se pelas frestas dos caixilhos de madeira velha das janelas, e mais calada que um rato instalou-se e apossou-se do olhar delas.
Já não se falavam não se olhavam e também não se ouviam.
Viviam de pressentir a outra. Acordavam, dormiam e voltavam a acordar na certeza da outra. uma certeza constante e vazia cada vez mais impossível de suportar.
A primeira pensava muitas vezes na libertação da morte. Finalmente o júbilo da solidão almejada, uma solidão real.
A outra não. A outra pensava nos biscoitos para o chá de amanhã. Biscoitos de manteiga, com raspas de limão e amêndoas torradas, os preferidos da primeira.
A morte. A morte era pouca coisa. A morte era quase nada.◄

  • Publicado no Jornal PALAVRA, edição de março 2021

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