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O Meu Ano de Repouso e de Relaxamento

O título, devido que é o crédito, foi cunhado pela autora americana Ottessa Moshfegh, que publicou o romance, já em 2018, e que, de há uns tempos a esta parte, tem recebido frequente reconhecimento e atenção pelos mundos cibernéticos. A premissa despertou-me a curiosidade: a personagem principal, uma jovem adulta, abastada e intragável, quer alienar-se do mundo o mais que possa, desafiando-se a passar aquele ano em hibernação, provocada maioritariamente por soporíferos mal prescritos pela sua psiquiatra. É em partes iguais atraente e degradante, claro: o pijama por lavar, o cabelo desgrenhado, a sujidade pelo corpo todo, a casa a deteriorar-se; mas, por fim, o tão desejado descanso, tão ininterrupto e pacífico!
No outro dia jantávamos cinco em casa de uma amiga: percebemos rapidamente que as queixas se repetiam, não apenas por estarmos cansados (estamos exaustos) mas por estarmos, em simultâneo, cada vez mais adormecidos, uma dicotomia que, passadas algumas horas de crítica análise aos nossos próprios comportamentos, deixou de parecer assim tão absurda. “Dantes tinha vontade de criar coisas, e agora dou por mim horas a ver vídeos de gatos”, dizia um. “Eu sempre disse que nunca iria instalar esta aplicação, mas agora uso esta que tem exatamente o mesmo efeito”, dizia outro. “Estou plenamente convencida de que o nosso cérebro não está preparado para a quantidade de informação que recebemos”, dizia uma. “Verdade – tão depressa me deparo com a fotografia mais fofa do mundo, como segundos depois estou a ser alimentada da história mais traumática que já ouvi”, dizia eu. Existe o mundo, certíssimo, que não para e também cansa: os transportes públicos, o trânsito, as teimosias do chefe, os ordenados mal pagos, a precariedade, a fome, a doença, a falta de condições de habitação em Lisboa, a guerra na Ucrânia, o declínio do SNS, o racismo institucional, o ódio disseminado contra “minorias”. E depois existe o soporífero, o ansiolítico, o prometido repouso e relaxamento: as doze horas de ecrã de seis polegadas; a inteligência artificial que, descobri este fim-de-semana, já escreve poesia sozinha (de que é que servimos ao mundo agora?), e já pinta à la Matisse se for isso que se lhe pede; os vídeos de “faça você mesmo” e “sabia que”; a informação em barda que nada informa mas que nos enche a cabeça de factos, nem todos úteis, sobre todo o tipo de temas, nem todos interessantes.
É um antídoto satírico, que zomba de todos quantos a ele recorrem: e, quais velhos do restelo, cinco ficámos sentados à mesa confrontados com a nossa rezinga corretíssima – “já ninguém faz nada!”
E assim, empalidecidos pela dura verdade (combatível, mas com que força? Estamos todos tão cansados), desligámos os telemóveis e fomos à sobremesa. Depois, exaustos, e cada qual no seu canto, pergunto-me quantos terão tomado a medicação antes de dormir.◄

 

  • Publicado no Jornal PALAVRA , edição de fevereiro 2023

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