Em Setembro de 2008 escrevi neste espaço sobre a então crise da economia mundial em geral e do imobiliário em particular. Chamava a atenção para o aparente conluio existente entre o chamado mercado e as entidades bancárias, com planificações especulativas baseadas nos juros baixos, bem como para que “num prazo de 15 a 20 anos, as economias não iriam aguentar o ritmo especulativo”. Nessa altura os bancos emprestavam dinheiro de qualquer maneira, sobre-avaliando os imóveis de forma completamente irrealista e previa-se que “quando a verdadeira crise chegar, já os senhores do capital puseram os seus interesses a salvo, deixando os problemas para os “clientes”.
Estamos agora justamente a viver essa realidade. Os bancos que, como de costume, nunca ficam com os ónus das crises, estão a recolher fundos aos incautos que acreditaram no negócio especulativo e na bondade dos seus préstimos hipotecários. O que normalmente acontece, sempre que há crises, é uma grande parte das pessoas ficarem sem os seus imóveis para os quais recorreram ao crédito, e ainda com uma divida remanescente durante mais uns anos. Este fenómeno tem um nome. Chama-se usura. Tem acontecido recorrentemente e vai acontecer agora de novo com esta nova crise que se está a configurar. A desculpa, desta vez, é a guerra. Há sempre um pretexto para esconder a verdadeira razão: as ações especulativas que desequilibram as economias, sempre em prejuízo dos mais pobres e dos que trabalham, e em benefício dos especuladores. E cá estamos nós, de novo, sujeitos a mais uma coleta de fundos através de rendas, de juros, de impostos e de taxas, que os governos, em conluio com os bancos, estão democraticamente a aplicar.
Querem fazer passar a ideia, falsa, de que um aumento de 3 ou 4% dos juros, são justificação para aumentar as prestações dos empréstimos à habitação em 30, 40, ou mesmo 50%. Tal aritmética é completamente falaciosa. Quando os juros estavam em 7 ou 8%, as prestações não eram de valor semelhante ao que agora se anuncia. Aliás, quando os juros baixaram para níveis abaixo de zero, as prestações não baixaram os tais 30, 40 ou 50%. Os bancos arranjaram logo umas taxas (a que chamam spraids, uma palavra estrangeira para ninguém entender que se trata de uma taxa) para compensar o nível baixo dos juros. Mas, agora, que os juros subiram, não baixam essas taxas. Mantêm-nas inalteradas. Tal como não alteram os juros dos depósitos à ordem, que se mantêm próximos do zero. Como sempre, os prejuízos são sempre para os mesmos e os lucros também. Aproveitam-se da situação, e dão já como ganhos os aumentos extravagantes de centenas de euros por mês, a aplicar a quem está amarrado, sem nenhuma defesa, a contratos usurários dos agiotas e penhoristas da banca.
A usura sempre foi considerada como um pecado pelas mais variadas religiões, crenças e tradições espirituais. Desde o antigo testamento que a Bíblia condena a usura: “Se emprestares dinheiro ao meu povo, ao pobre que está contigo, não agirás com ele como credor que impõe juros”; “Se teu irmão empobrecer, e as suas forças decaírem, então, sustentá-lo-ás. Não receberás dele juros nem usuras. Não lhe darás teu dinheiro com juros, nem lhe darás alimento para receber usura”. Também o Corão tem passagens a condenar tais práticas, considerando que a usura “não é nem comércio nem lucro”, e é contrária ao Zakat, um dos cinco pilares do Islão, o relativo à responsabilidade social para com os irmãos. “Quando emprestardes algo com usura, para que vos aumente (o valor) às expensas dos bens alheios, não aumentará perante Deus”; “Ó crentes, não exerçais a usura, multiplicando (o empréstimo) e temei a Deus para que prospereis”. O Profeta pregou que “Deus amaldiçoou aquele que cobra juros, aquele que os paga, aquele que redige o contrato e aquele que testemunha a transação”.
Mais recentemente, o Papa Francisco comentou com veemência estas práticas: “A usura é um pecado grave porque mata a vida, pisoteia a dignidade das pessoas, é veículo de corrupção e impede o bem comum”. O Papa João Paulo II já tinha deixado a seguinte reflexão: “Não se pratique a usura, chaga que também nos nossos dias é uma infame realidade, capaz de estrangular a vida de muitas pessoas”.
Apesar dos alertas, e desde que a economia é controlada por entidades independentes de qualquer fiscalização democrática – os chamados bancos centrais dependentes das grandes corporações e de interesses pouco transparentes – os “credores” já não são já vistos como parceiros de negócios, mas como potenciais devedores. O grande objetivo dos prestamistas parece ser o esbulho dos bens hipotecados que foram sobre avaliados na altura do crédito, para aliciar os imprudentes, mas que na altura do incumprimento vão ser sub-avaliados, recorrendo a processos ardilosos e injustos, previamente acautelados nas letrinhas pequenas dos contratos. Outra forma de usurpar os bens penhorados faz-se alterando as regras dos contratos a meio do processo, como agora os bancos centrais estão a fazer, aumentando sem nenhuma razão os valores combinados, bastando para isso uma qualquer justificação (uma guerra, uma pandemia, uma crise bancária) e altera-se tudo o que convém ao prestamista sendo sempre os credores os penalizados e prejudicados. A grande maioria dos “clientes” passam a ser incumpridores, por força da usura praticada e do não cumprimento dos contratos. É uma forma de legitimar o roubo legalmente e sem possibilidade de contraditório. E ainda há quem diga que todo este procedimento é democrático.◄
- Publicado no Jornal PALAVRA, edição de novembro 2022
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