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Saúde mental

Passei grande parte do meu secundário a desejar estudar psicologia na universidade. Foi sol de pouca dura, em primeiro lugar pela minha falta de habilidade para o que tocava nas ciências exatas, em segundo porque, ao não o estudar, poderia preservar intocável o meu interesse sem que esmorecesse pela ânsia de validação académica.
Quando eu era adolescente, a nossa psique já era tema. Líamos António Damásio como gente grande. Falava-se já, também, de saúde mental, ainda que com um linguajar ligeiramente diferente. Chegámos a debater temas interessantíssimos em aulas de filosofia. Não creio, portanto, ter crescido em absoluto estigma ou profundo desconhecimento – mas tampouco antecipava que, numa questão de anos, a saúde mental passasse a ser tema tão central no espaço público.
Não desejo ser mal interpretada: é uma vitória, em muitos sentidos, podermos falar abertamente de saúde mental; podermos ter palestras, seminários, talks no meo arena, streams na internet, blogs, vlogs, ensaios, artigos. É uma vitória, em muitos sentidos, podermos sentar-nos na esplanada e começar a conversa com “a minha terapeuta disse-me que…” – tempos houve em que ter uma terapeuta, fosse por que motivo fosse, não era assunto que abrisse conversas de esplanada.
Mas a saúde, mental ou não, é saúde – e nem todos, por muito interesse intocável que guardemos no coração, estamos habilitados a trabalhá-la da melhor forma. Correndo o risco de soar condescendente (e lamento se o fizer, pois muito do que aprendi e descobri da minha própria saúde mental foi-o, também, com amigos e pessoas, em teoria, “não habilitadas”), a proliferação do discurso sobre a importância da saúde mental deu também azo à mercantilização desse mesmo tópico.
Em muito pouco tempo passámos de um ambiente ainda tímido, que se desprendia de estigmas e preconceitos, para um ambiente onde a nossa saúde pode ser reduzida a sound bites de dez segundos em vídeos, a dicas de meia dúzia de palavras escritas em fontes divertidas sobre fundos coloridos, a considerações semi-profundas sobre toxicidade, trauma, autoconhecimento, amor próprio, aceitação – todos estes temas de uma importância extrema, mas também de igual complexidade, e que portanto não podem ser (em exclusivo, pelo menos) tratados com a leveza que hoje vemos.
Muito se tem escrito sobre este assunto (e muito também pelas feridas ainda a cicatrizar da pandemia).
As conclusões são, apesar de tudo, sempre idênticas, e partilho-as: É bom podermos falar de saúde mental. É bom que normalizemos diagnósticos que são, afinal, tão comuns. Sensibiliza-nos para os outros e desperta-nos para nós mesmos. Permite-nos viver em comunhão e compreensão, e dá-nos espaço para nos tornarmos pessoas melhores. Infelizmente, contudo, parece-me que o acesso a cuidados de saúde mental devidamente capacitada (psicoterapia, psiquiatria, o que for) é muito distinto do acesso exclusivo à “saúde mental” viral (a que até pode ter fundo de verdade, mas simplifica a experiência humana e nos despe de responsabilidade perante nós mesmos e quem nos rodeia). Resta-me ansiar para que, dentro de anos, aqui escreva no diário de bordo o quanto evoluímos também nesse sentido. ◄

 

  • Publicado no Jornal PALAVRA, edição de abril, 2023

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