Laura tinha vindo da cidade grande para acompanhar a tia. Deixara o curso de filosofia a meio, o quartinho acanhado da residência vago e as expectativas suspensas até nova data.
A tia Túlia ficara viúva por altura do Natal, tinha chorado o seu Maurício por dias e noites sem cessar mas era chegada a hora de voltar a viver. Palavras ditas pela própria quando puxou do poder do dinheiro da herança do Mauricinho, mesmo em frente do nariz guloso do pai de Laura. – Filho- disse para o sobrinho – chamas a Laurinha que ela tem a carta, pode levar-me onde eu quiser e precisar filho. As raparigas não se querem muito estudadas, tu sabes, e ainda de fosse um curso de médica ou professora, agora aquilo, que futuro pode ter para uma rapariga! Filho, olha ficávamos todos bem. Que ficas a saber que o meu Maurício me deixou bem calçada e eu só te tenho a ti, quem mais me vai valer?
Em menos de uma semana ficara com a vida de pantanas. Os amigos tinham ficado de boca aberta perante a decisão extemporânea e o Vasco tinha-lhe suplicado que ficasse pelo amor de Deus. Namoravam há menos de um ano, mas longe da cidade grande, do curso e do rapaz, podia assumir sem culpas que lhe parecia estar com ele há mais anos do que os que tinha de vida. O rapaz era carente, peganhento às vezes a roçar o possessivo. Voltar para a província, assim de supetão acabava por ter sido uma bênção neste departamento.
A tia Túlia era uma mulher nos seus sessenta anos, robusta mas vistosa. Casara com o Maurício das Costelas com 18 anos acabados de fazer já ele era homem feito quase nos trinta. Era negociante do gado e já nessa altura contava fortuna, parte herdada parte arrecadada. Foram felizes mais de quarenta anos a viver um para o outro. Nos primeiros dez anos anisaram pela chegada de filhos e depois de algumas perdas e muitas lágrimas consolaram-se nos braços um do outro sempre a amealhar mais e mais património até que a doença dele os apartou para a eternidade.
Mas a vida é curta como lhe provara o seu amor e a primavera chegada aguçara-lhe os sentidos. Que viesse a Laurinha, que viesse pois.
Tinha os olhos fixados no relógio de parede. Duas da tarde e nem sombra ou intensão de sair dali. A tia quisera vir ao salão de cabeleireiro. Tinham saído da aldeia as 10 da manhã com um café no bucho e às pressas porque a marcação era para as 10 e meia, e até à vila demorava-se à vontade uns vinte minutos. – Ai rapariga faço-me velha à tua espera, disse nove e meia e tu apareces-me às dez! Anda lá despacha-te!
Já tinha pintado, cortado, feito a mise, arranjado os pés, tinha depilado o buço, arranjado as sobrancelhas e estava agora a decidir entre um vermelho berrante e um rosa fluorescente para pintar as unhas.
A conversa esta estava boa ao que parecia, e os ponteiros do relógio mal se mexiam. Estava enfadada e a espera dava-lhe tempo para pensar no que tinha deixado para trás. A capital com todos os seus chamamentos, os jardins, os cinemas, os teatros, os cafés, as festas da universidade e a liberdade. De tudo o que mais prezava era a liberdade para usar o seu tempo.
Estava na aldeia havia quase um mês e tinha conduzido a tia para sítios diferentes todos os dias. Tinham ido às compras à cidade mais próxima porque a Páscoa estava mesmo à porta e não tinha roupa capaz – Laurinha toma sentido, quem não estreia no Domingo de festa, nasce-lhe um corninho da testa! – Depois ria um riso solto e despreocupado. E lá iam obedecer ao proverbio.
Tinham ido aos mais diversos mercados e supermercados, à costureira, a outra costureira, a um recital na igreja da paróquia vizinha, a um concertos de Filarmónicas no centro social da aldeia e até a uma vidente que vivia numa casa no meio do campo e que diziam as pessoas da aldeia não errava uma adivinhação, tratava de problemas de dinheiro, invejas e amores. A tia Túlia queria saber se viveria sozinha para sempre, porque se assim fosse mais valia partir pra junto do seu Maurício, tinha dito no caminho para a casa da tal mulher.
La chegadas viram um monte muito branco caiado de fresco. A mulher apareceu mal ouviu o barulho do carro pela estrada. Assomou-se à porta com um cão pequeno no colo. Era baixa e franzina e assim à primeira vista teria pouco mais de trinta anos. – Sejam bem-vindas disse enquanto abria caminho para a tia entrar. – A menina não entra? Venha que eu já lhe leio as cartas. Lura agradeceu, desculpou-se com uma dor de cabeça e ficou no automóvel à espera
A tia saiu trinta minutos depois. Com um sorriso estampado e os olhos rasos de esperança.
A mulher acompanhou-a até à porta, agradeceu o donativo e despediu-se com um até breve. Quando a tia abriu a porta do carro ainda a ouviu – Menina vão com cautela. Vem aí chuva forte, vê? Está a colar-se ao céu. – E apontou para as nuvens carregadas de chumbo que se aproximavam cada vez mais.
Assentiu com a cabeça e sorriu. Ainda não tinham chegado a casa e já o astro desabava por cima delas. Estacionou em frente do casarão, abriu a porta do carro depois a sombrinha e deu a volta para abrir a porta da tia.
À porta de casa a tia pegou-lhe no braço – Filha não sei o que faria sem ti. Sei que tens a cabeça cheia de sonhos e ideias e opiniões, e acredita que isso é muito bom. Apenas agora eu preciso de ti compreendes? Entras para um chazinho?
Pensou recusar, mas perante o estrondo de um trovão e o agravar da enxurrada, entrou para a segurança do solar.
Era um casarão enorme, frio e solitário. Pela primeira vez teve pena da tia. Afogada na sua riqueza. Percebeu o porquê da mulher querer tanto estar fora dali. Na sala de chá em cima da mesa ainda estava o cinzeiro e a caixa de charutos do tio Maurício como se ele estivesse prestes a chegar a fugir da chuva.
– Laurinha não te apoquentes, aquela mulher disse que não vou viver sozinha para sempre.
E naquele momento em que a trovoada não deixava ninguém sentir-se só, desejou que a vidente tivesse razão.◄
- Publicado no Jornal PALAVRA, edição de abril 2023
Mais Noticías
Um segredo
Aves
Recuperar a humanidade