Quanta ignorância numa notícia só. Foi este o meu primeiro pensamento quando li a notícia, publicada no semanário Expresso no passado dia 26 de agosto, intitulada “Católico e muçulmana casaram em igreja de Fátima para “mostrar que é possível”: é um “sinal de tolerância” entre religiões”.
Quantas considerações merece uma notícia destas, a começar logo pelo título. O erro de casar para “mostrar que é possível”. Ninguém se casa para mostrar seja o que for ou, então, perdeu o foco da essência do casamento, seja ele união de facto, casamento no Registo Civil ou o Sacramento do Matrimónio realizada pela Igreja ou a união de duas pessoas em qualquer religião ou grupo religioso. O foco do casamento é o amor livremente vivido e partilhado na decisão de viverem juntos para o resto da vida. Um casamento, como qualquer outro acontecimento pode ter muitas leituras, mas a finalidade não é a de provocar leituras por muito genuínas e assertivas que elas sejam.
Segundo a notícia, o casamento realizou-se para “mostrar que é possível” e nós perguntamos, “que é possível o quê?” Que uma muçulmana se case com um católico? A ignorância leva a afirmações como esta. No decorrer da notícia percebe-se que, afinal, é possível, mas os noivos, e possivelmente a grande maioria das pessoas, mesmo dizendo-se católicos, não sabe e, por isso, a notícia confirma que os noivos “Toni Jorge, católico, e Oumayama, muçulmana, achavam que o casamento pela Igreja Católica seria impossível”.
Conclusão de todos, noivos, família e jornalista “o ato comprova a abertura da Igreja, um sinal de tolerância e de compatibilidade entre as duas religiões”. A ignorância fabrica notícias. Se, como era obrigatório, todos os intervenientes estivessem bem informados, não havia notícia, nem ficariam admirados porque saberiam que no Código de Direito Canónico (CDC) está prevista a possibilidade e regula-se a realização dos casamentos chamados mistos, em que uma parte católica contrai matrimónio com uma parte não católica ou mesmo não batizada.
Até o Catecismo da Igreja Católica (CIC) refere que, “em muitos países, a situação do matrimónio misto (entre um católico e um batizado não-católico) apresenta-se de modo bastante frequente” assim como os casamentos “com disparidade de culto (entre um católico e um não-batizado)” (CIC 1633). Trata-se de uma prática bem antiga.
A estranheza de um casamento entre um católico e um não católico e, no caso relatado na notícia, com o membro da religião islâmica, deve-se ao facto de serem ainda poucos em Portugal, mas não o são no mundo. Por outro lado, acontecem muitos casamentos com disparidade de culto, mas as pessoas não se dão conta pelo facto de estarmos num país em que julgamos que todas as pessoas são batizadas, o que não é verdade. São vários os casamentos, que se realizam na Igreja, em que um dos noivos não está batizado e o casamento se realiza com disparidade de culto, sem que os convidados, e muitas vezes até os familiares, se apercebam da diferença relativamente aos casamentos entre dois católicos.
Quando a notícia do semanário Expresso relata que o noivo, a parte católica, referiu “sempre que contámos a alguém sobre o casamento, todos ficaram surpreendidos. Ninguém sabia que era possível casar com uma pessoa muçulmana numa igreja. É uma boa ocasião para mostrar que é possível”, percebe-se a ignorância como fenómeno geral. Ainda mais, quando o próprio noivo se congratula “como cristão, agrada-me saber que a minha religião está mais aberta e a aceitar melhor os outros. A religião é isso: aceitar as pessoas, independentemente da nacionalidade, da sexualidade, etc.”, revela de facto muita falta de conhecimento da realidade da Igreja.
Ainda assim, a notícia tem aspetos positivos que se prendem não com a abertura da Igreja, porque não é de hoje, nem com a tolerância entre religiões, porque também não é de hoje, mas no caminho realizado pelos dois noivos. De facto, vencer a estranheza, tão habitual, de um português contrair matrimónio com uma muçulmana, é já de si um feito. Se o amor os uniu, o que pode mesmo separá-los? Nada! A não ser a mesquinhez dos homens.
Os dois fizeram um caminho de aproximação mútua e levaram consigo as famílias. O amor tem este poder, o de atrair. Da inicial sensação de impossibilidade chegaram os dois a uma realidade possível que não é a da realização da celebração do matrimónio numa Igreja, mas a da comunhão de pessoas distintas e da familiaridade entre pessoas de credos diferentes. Enquanto a família da noiva queria que o noivo se convertesse em muçulmano, “os dois noivos conseguem afirmar “somos ambos crentes, eu acredito em Deus, ela acredita em Deus. Temos diferentes religiões, mas sabemos que ambas têm os mesmos valores. Isso é o mais importante. Não importa se rezamos de forma diferente ou não”. E a noiva tem a coragem de dizer à família “não, nem pensar, não vou forçar ninguém a mudar de religião por minha causa” e, conduzida pelo amor decide casar na Igreja “quando percebi que era algo que o podia fazer feliz, a ele e à família, e que não me sentiria incómoda com isso, disse: ‘tudo bem’”. Esta é que devia ser a motivação da notícia
Um outro aspeto positivo da notícia é o facto de revelar que não é a religião, mas as pessoas, quem estabelece barreiras. Oumayma, a noiva tunisina, espera que o seu casamento seja uma experiência “boa para eles”, os familiares, “para verem que é bom ser aberto a outras religiões”. Os pais e um irmão estiveram presentes, mas um outro irmão e a irmã não compareceram. O problema está nas pessoas e não nas religiões. Também do lado dos católicos são os pais quem não acredita ser possível realizar a celebração na Igreja. Diz a notícia que “os pais disseram que o padre nunca iria aceitar”, enquanto a noiva refere que o padre “foi muito acolhedor. Disse que faziam casamentos mistos e que bastava que um de nós fosse católico e batizado”.
A ignorância e o conservadorismo causam tantos prejuízos na vida das pessoas. Acontece hoje, em relação à Igreja, o preconceito transformado em julgamento que impede a procura da verdade. Parte-se do princípio que a Igreja diz ‘não’ quando há tanto ‘sim’ em cima da mesa. ◄
- Publicado no Jornal PALAVRA, edição de setembro 2023
Mais Noticías
Um segredo
Aves
Recuperar a humanidade