Um- Ferida
Em 2014 foi escrito um artigo sobre a dor das mulheres – Grand Unified Theory of Female Pain – onde a autora descreve as feridas como algo in medias res, por a causa do ferimento estar no passado, mas a cicatrização não estar concluída; uma violação da privacidade da pele, a linha ténue entre o interior (músculo, nervos, sangue?) e o exterior (pó, roupa, mundo?). São da maior inconveniência, claro: persistentes, porque, passado já o impacto primeiro do que as causou, não passam a ser indolores (a dor, essa, alastra e aconchega-se); exibicionistas, porque tampouco deixam de estar ali, preparadas para a qualquer momento serem percecionadas, indagadas, romantizadas (no pior dos dias), memorizadas (no melhor dos dias?).
Saí de casa há dias para ir às compras e raspei o calcanhar num portado – é talvez a ferida menos cáustica deste ano, mas porque agora é a ferida que é, que está, é talvez aquela de que menos gosto. Ela está aconchegada (passaram dias), eu de birra (não uso os meus sapatos favoritos desde então). Dentro de outros tantos dias vou esquecer-me dela (se tudo correr bem), o que não acontece com muitas feridas (passe-se para o ponto II.), mesmo quando elas não deixam marca (há dias também, falava com a minha irmã sobre uma história que ambas lemos onde a personagem principal recebeu um estigma depois de tatuar um serafim, e aprende a aceitar estas suas feridas, porque chegamos todos a Jesus com as marcas que tivermos de chegar, visíveis ou não): e, por agora, mesmo que a dor não passe, saber tudo isto basta-me.
Dois- A cicatriz
Por ordem cronológica, começaria nas orelhas: um milímetro de espessura, um furo em cada lóbulo, memória nenhuma da dor, um ritual de passagem. O terceiro, depois, do lado direito, à pistola, uma dor mais afiada, mas pouco duradora. No queixo apareceu cedo, dois centímetros, horizontais e pálidos, de cair de caras no corredor da casa da avó. Nos joelhos, já adolescente, custou mais a vergonha do que a agonia de não conseguir esticar a perna – os cordões das botas mal atados, quatro riscos grosseiros, a pior das cicatrizações. Na mão direita, também adolescente, depois de tentar lavar uma lata antes de a colocar no lixo (deve ter feito sentido na altura, quero acreditar), a água quase límpida do alguidar a virar escarlate a uma velocidade alarmante. Outros três furos nas orelhas, o da cartilagem uma coisa feia onde não cabe nenhum brinco. Na coxa esquerda, quando me cortei sem querer. Nos braços, meias-luas que vão mudando de castanho-escuro para pérola, constantes e reincidentes, das pressas em tirar a comida do forno. Outras tantas de que não me apetece falar, mas que estão mapeadas ao longo de mim, inteira, toda, e pertencem, incluem-se, nessa exata totalidade. No fim, chegue eu a Jesus ou a outro lugar qualquer, espero poder falar(-lhe?) de todas elas, contentada pelos seus ensinamentos (não lavar uma lata de salsichas antes de a reciclar, desde logo), resignada pelas suas figuras. ◄
- Publicado no Jornal PALAVRA, edição de setembro 2023
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