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Luís de Freitas Branco e o Monte dos Perdigões

Terminamos, com esta terceira parte, os artigos dedicados ao compositor Luís de Freitas Branco, um Reguenguense que não nasceu nem morreu por cá, mas que teve a sua vida fortemente ligada a esta terra, em particular ao Monte dos Perdigões, propriedade onde viveu parte da sua vida.
Ainda professor do Conservatório, viria a ter um filho fora do matrimonio, o maestro João de Freitas Branco (1922 —1989), fruto de uma relação com uma funcionária da instituição, Maria Clara Dambert Filgueiras, quando era ainda casado com Stella Diniz d’Ávila e Sousa, de quem não teve qualquer descendência. O facto, que assumiu com frontalidade, gerou enorme escândalo social e penas disciplinares consequentes. Para além da incompreensão familiar, acabou por ser suspenso das suas funções em 1934. Começou a fazer palestras regulares na antiga Emissora Nacional, donde veio também a ser demitido, em 1951, acusado de ter usado uma gravata vermelha no dia seguinte à morte do presidente Óscar Carmona. De facto, a gravata não era totalmente vermelha, mas de um padrão quadrejado com umas listas vermelhas. De qualquer modo, a tonalidade foi suficiente para ser considerada pelo regime como um insulto à memoria do falecido. Não se apurou se o acto foi consciente ou fruto de desatenção.
Terá sido, na sequência da viragem intelectual registada no seu diário, que se mudou, em 1942, com uma nova companheira, Maria Helena de Freitas, para o Monte dos Perdigões. Por palavras da própria, “foi num dia maravilhoso de sol, com as searas enormes, em plena primavera. Reguengos tornou-se nessa altura o seu lugar preferido, ao ponto de ter pedido para ser lá sepultado”. Não o foi. Repousa no cemitério dos prazeres em Lisboa. Segundo ainda Maria Helena, o compositor “lidou muito com o Povo de Reguengos, mas não o povo como é referido por certas pessoas de forma humilhante. Ele sentiu e conheceu o sofrimento das pessoas e a miséria em que viviam, ao ponto de dizer que certos andamentos lentos da sua obra transmitem justamente a forma como ele sentia esse sofrimento”.
D. Luís de Freitas Branco, como era tratado pelos trabalhadores, “adorava o canto Alentejano, e recebia no período do natal, para cantes de reis e de janeiras, os cantadores da região”. Estes encontros, que o maestro solicitava com interesse, ocorreram alguns anos antes ainda da fundação do Grupo Coral da Casa do Povo de Reguengos, em 1945, como resultado da fusão de dois grupos já existentes, o do Covalinho e o da Aldeia de Cima. Os grupos corais e de folclore, que o maestro desprezava expressamente preferindo “as realizações populares e espontâneas que considerava autenticas”, foram obra das “Casas do Povo” que se constituíram com fins sociais, culturais e assistenciais aos trabalhadores rurais, durante o regime corporativista do Estado Novo. Estas sessões de “Janeiras” e de “Reis”, terão continuado mesmo depois da junção dos dois grupos rivais. O maestro, “tentava cantar com eles”, e no final, os cantadores eram convidados a entrar para uma ceia onde eram distribuídas guloseimas. Eram grupos numerosos e incluíam mulheres e crianças. “Quando estes lhe pediam para que tocasse, ele acedia com gosto às solicitações”. Para além das inúmeras recolhas que fez, o compositor escreveu, em conjunto com Maria Helena, uma cantiga influenciada nesses cantes, que foi mais tarde completada por Joly Braga Santos. Ainda jovem, há registo do seu interesse pelo Canto Alentejano: “A Suite Alentejana (que está ainda por começar) tem-se enriquecido estes últimos dias com mais temas que tenho notado ao ouvir cantar em coro estas gentes de cá. Vão começar dentro em breve as vindimas. Tenciono aproveitar a ocasião para fazer também a minha colheita de cantos populares…” (carta de1908). A sua segunda Suite Alentejana viria a ser integralmente composta no Monte dos Perdigões.
Freitas Branco, ainda que pontualmente, aceitou escrever música para o regime de Salazar que tanto desprezava. O mais conhecido exemplo é o da Abertura Solene «1640», de 1940, destinada às comemorações dos centenários da fundação e da restauração nacional, enquadradas na “Grande Exposição do Mundo Português”.
Teve incursões na música ligeira com bandas sonoras para os filmes, de 1934, “Gado Bravo” de António Lopes Ribeiro, e “Douro, Faina fluvial” de Manuel de Oliveira. Já no Monte dos Perdigões escreve a música para Frei Luís de Sousa (1950), considerada uma das melhores partituras do cinema português, de influência Wagneriana. Do mesmo ano são duas Canções revolucionárias, de conteúdo subversivo, para poemas de Fernando Mouga e José Gomes Ferreira, na mesma linha das Canções Heroicas de Fernando Lopes-Graça. Em 1951 inicia a escrita da ópera “A Voz da Terra”, inspirada na luta de classes, obra em que trabalhava quando faleceu, e se ficou pelo 1.º Acto. No entanto, os excertos incompletos são suficientes para se perceber uma aproximação musical romântica ao “homem comum e ao universo do neorrealismo”. A vida do compositor, nos Perdigões, neste período prolixo, foi intensa, aí recebendo amigos, alunos, compositores e intelectuais, que lá passavam temporadas estudando e trabalhando, e também em noitadas criativas e musicais. Uma verdadeira academia musical informal. Fernando Lopes Graça, Joly Braga Santos, Bento de Jesus Caraça, Paul Stefan e José Atalaya, para além do seu irmão Pedro e do filho João, foram alguns desses frequentadores tertulianos dos Perdigões. Disso ficaram testemunhos em cartas e outros registos, como por exemplo este: “as noites têm sido lindas, estreladas e de uma temperatura agradável. Temos estado, por vezes até tardíssimo, na nossa: “terrace des audiences du clair de lune”, numa referência a um título de uma obra para piano de Debussy.
Ainda assim, tinha tempo para as caçadas, que adorava, e para longos passeios a cavalo pela região e até por Espanha. Frequentava habitualmente o “Café Central”, onde ficava a conversar com os presentes, horas a fio. Também participava numa “tertúlia de notáveis locais, que se reunia no escritório dos irmãos Durão, que tinham representação de seguros e adubos.” Em 1935, com o seu filho João de Freitas Branco, “deu dois concertos no cinema de Reguengos, em benefício da Misericórdia da vila.” Doou, em 1945, à câmara municipal, os terrenos e o poço que foi aberto junto à estrada nacional para abastecimento da população, sem qualquer indeminização.
A propriedade, que teve de hipotecar nos anos 40 para ir pagando a parte da irmã e para manter o usufruto da mãe, não dava o rendimento suficiente para a manutenção dos encargos, e assim, após mais uma hipoteca realizada em 1954, teve de a vender ao lavrador local Francisco Falé Batista, que já era rendeiro da horta. Foi assim que o compositor voltou a viver na casa da Rua do Século em Lisboa, onde acabou por vir a falecer, cerca de dois anos mais tarde. ◄

  • Publicado no Jornal PALAVRA, edição de setembro de 2022

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