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Os dias eram fogo posto

O passo apressado da mulher incomodava o silêncio pacifico da rua. Seguia a rasar as paredes das casas a aproveitar a nesga de sombra das duas da tarde.
O café da vila ficava mesmo ao virar da esquina, mas até chegar lá tinha a rua comprida para vencer.
E não era o alerta a vermelho do termómetro a bater nos quarenta graus que a impedia de se esgueirar depois de almoço.
Todos os dias eram iguais, acordar com o sol, preparar a marmita para o marido levar, o homem trabalhava numa cidade vizinha, abalava logo cedo e só regressava ao sol-posto.
Levava-o à porta despediam-se com um beijo rápido e depois já no silêncio do amanhecer, abria o postigo da porta da cozinha e bebia aquela luz perfeita. A água na cafeteira já borbulhava e a casa acendia-se com o cheiro a café acabado de filtrar. Por um momento a vida era leve.
Sentava-se à mesa, sorvia o café devagar e por norma ainda antes de ver o fundo da chávena, a mãe chamava-a do quarto.
Depois de enviuvar tinha vindo para a casa da única filha mulher para não ter que enfrentar o vazio e ser sugada por ele. Os dois filhos, mais novos tinham fugido da aldeia pequena para se perderem no cinzento de uma cidade qualquer no estrangeiro. Vinham no Natal a falar afrancesado e com a mesma rapidez com que chegavam assim partiam com um até para o ano aliviado.
Era quase um ritual, primeiro o chamamento vindo quarto numa espécie de lamento – Ana! Ó Ana! – levantava-se às pressas, abria a porta, logo a seguir abria um sorriso, um bom dia e por fim um beijo repenicado. A mãe acalmava o coração e devolvia o sorriso. Acompanhava-a até à casa de banho, ajudava com a higiene diária e depois levava-a para a salinha para o pequeno-almoço. Muito de vez em quando a mulher pedia à filha que lhe fizesse fatias paridas. Dizia que lhe lembrava o tempo em que os filhos lhe davam pelo joelho e não lhe davam mais trabalho que fatias paridas ao acordar. O cheiro a azeite quente misturado com açúcar e canela aguava a boca das crianças e sossegava-as naqueles minutos em que os sentava à mesa da cozinha e punha ao centro aquela pilha de ouro polvilhada de felicidade. Depois os gaiatos cresceram e foi quando lhes chegaram à altura do peito que partiram e levaram tudo o que estava dentro.
Mas hoje era a habitual torrada, escurinha, barrada com manteiga só de um dos lados e uma chávena de cevada bem quente cortada com um apontamento de leite.
O café tirava-lhe o sono, dizia, e ela precisava de dormir para não viver tantas horas.
Apesar do calor a velha gostava de se sentar no sofá perto da janela a ler. Às vezes fechava o livro por cima da mão e demorava-se a olhar a rua. A rua nos dias de verão era triste. Já não havia crianças a correr, rapazes a jogar à apanhada, raparigas a saltar à corda. Nada. Só as paredes e o sol.
Ana sabia que a mãe tinha a cabeça cheia de histórias. As que lia nos livros e as que escrevia nos seus olhos. Sabia como era só. Sabia como a solidão era traduzida em palavras quando pausava a leitura para olhar a rua.
Depois da bica voltava para casa de olhos no chão. Escondia-se do sol nas sombras magras com pressa de se abrigar.
Os dias eram fogo posto. Ontem tinha vinte anos, tinha a certeza de ter sido ontem. A rua era toda sua, de lés a lés a pequena aldeia era o mudo e o mundo era todo seu. Falava alto e ria alto e olhava de frente para todos. Namoriscava com quem lhe dava na gana, punha na ordem os homens de olhares lascivos e palavras sujas que tinham o desplante de tentar a sorte. Era a rainha da festa era bonita e valia-se disso. Perdeu-se de amores pelo Jaime e o Jaime por ela, casaram e foram felizes. Ainda são. O Jaime continua o rapagão de olhos grandes e coração ainda maior, um gigante desengonçado que a fazia rir até ter dor de barriga, que a deixava com o peito inquieto e o coração num ardor constante.
Os filhos não vieram nunca. Nessa espera de dor, ou em algum outro ponto do caminho desse dia que foi ontem até hoje, deixou para trás a rapariga bonita. A rapariga que comandava o mundo ficou lá longe. É possível que se tenha perdido nos braços do Jaime num baile de verão, ou no desfile de Carnaval a lançar serpentinas e beijos para a audiência. Quando deu por ela já não se encontrou. Sem dar por isso os gestos repetiam-se, o beijo de até logo, o pequeno-almoço da mãe, a bica do almoço, a casa, o jantar, a noite e o sono que só vinha quase de madrugada.
Onde se teria perdido? Será que o Jaime sabia que não era ela? Ou pelo menos que não era ela toda? Ele não sabia, ou não se importava. Amava-a por inteiro. Amava-a tanto que nem reparou que ela era outra agora.
Quando chegou a casa a mãe lia ainda. Que pena tinha de não ser mais como ela e ter os olhos rasos de estórias. ◄

 

  • mPublicado no Jornal PALAVRA, edição de setembro 2023

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