A expressão com que titulei este texto é a mais forte exclamação da Jornada Mundial da Juventude que decorreu no nosso país na primeira semana de agosto. Foi com ela que o Papa Francisco saudou os peregrinos no primeiro contacto público, afirmando, sem rebuços ou alguma ponta de dúvida, que a Igreja está aberta a todos, sem exceção. Mas Francisco não se ficou por aqui nas suas mensagens certeiras na análise ao contexto europeu e mundial que atravessamos. Condenou a economia do capitalismo selvagem, baseada exclusivamente no lucro, apelou consequentemente à paz, apontou à ausência de políticas sociais eficazes na União Europeia, voltou ao tema dos imigrantes e refugiados que a Europa tem dificuldade em acolher, não evitou o tema dos abusos sexuais de menores por membros do clero, pedindo humildemente desculpa às vítimas e revelando a vergonha pessoal com que se confronta quando o assunto é este. E reafirmou a solidariedade e o amor ao próximo como valores essenciais e fundamentais da ortodoxia católica e cristã.
Depois do entusiasmo generalizado dos muitos, imensos, participantes, o que fica? Que resultados para o quotidiano de cada um e da sociedade? Será que o mais de milhão e meio de participantes consegue disseminar entre as respetivas famílias, rede de amigos e de contactos, as mensagens que o Sumo Pontífice deixou? Poderemos esperar que a tolerância para com o Outro, independentemente do credo religioso, da posição ideológica, da origem geográfica, da cor da pele, da orientação sexual, da situação económica, seja mais efetiva a partir de agora? De acordo com vários casos, isolados é certo, que se viram durante os dias que durou a JMJ, não se podem aguardar grandes mudanças. Exemplificando: uma celebração numa igreja no Lumiar, em Lisboa, promovida por católicos transgénero, foi interrompida por católicos autointitulados “ultraconservadores”, que tiveram de ser retirados por forças policiais, para que a missa pudesse prosseguir. Um casal interpelou um peregrino que transportava uma bandeira da comunidade transgénero, em pleno Parque Eduardo VII, com o Papa presente, repudiando a bandeira, argumentando que não devia estar ali. O presidente da Câmara Municipal de Oeiras, o polémico, para dizer pouco, Isaltino de Morais, mandou retirar um cartaz na rotunda de Algés, que denunciava os abusos sexuais de membros da Igreja em Portugal, num inenarrável ato de censura, no ano em que se comemora meio século do 25 de Abril. O ridículo foi tanto que, passados dois dias, o cartaz foi recolocado. Um peregrino, em direto na SIC, referiu que “os padres não são os culpados. As crianças põem-se a jeito e depois admiram-se”.
Sei que as enormes multidões têm de tudo e mostram todas as virtudes e defeitos do género humano. Mas, exatamente por isso, tenho enorme perplexidade que o evento ocorrido em Lisboa seja o motor de uma sociedade mais justa. Porque, apesar de Francisco se ter referido aos políticos em geral, foi muito mais incisivo para cada um, porque a mudança só acontece se começar por cada um. Um bom exemplo da dúvida que se pode instalar tem a ver com o lixo deixado no Parque Tejo pelos peregrinos, apesar dos constantes apelos da organização para os aspetos ambientais, para que esta fosse a JMJ mais ecológica e mais verde. De acordo com imagens que acabo de ver, este propósito foi completamente falhado
Aliás, a distância entre a mensagem papal de despojamento de bens materiais e o gigantismo, a ostentação, os gastos obscenos, que rodearam a organização portuguesa, merece também reflexão profunda. O Sumo Pontífice até referiu que precisamos todos de empobrecer um pouco, para que a pobreza mundial seja mais pequena. E ainda acrescentou que não podemos ter nojo da pobreza. E a organização portuguesa, dando um exemplo lastimável, construiu três palcos, quando um seria suficiente, aumentando os custos financeiros, e aumentando as privações (número gigante de ruas inacessíveis, transportes condicionados e em muito menor quantidade nas zonas fora das comemorações, zonas interditas, etc. ) a que os lisboetas estiveram sujeitos durante a JMJ. Também o financiamento público, de governo e autarquias, foi e é motivo de reflexão. Deverá um estado laico financiar uma manifestação de um credo religioso? Em vários países onde já teve lugar a JMJ, o respetivo Estado não patrocinou, de todo o evento. Destaque para a Espanha quando, em Madrid, em 2011, a manifestação foi custeada pelo dinheiro das inscrições e por financiadores privados. Mas em Portugal houve vários atores políticos que quase se substituíram ao Papa como principais figuras. O primeiro de todos foi Carlos Moedas, autarca de Lisboa, que arranjou forma de falar em todas as circunstâncias, referir, vezes sem conta, que era ele o responsável, mostrar uma felicidade irritante, como se fosse ele a figura central. Luís Montenegro que se cuide. O capital de popularidade capitalizado por Moedas faz dele o putativo novo candidato à liderança laranja. Se Moedas foi o primeiro, logo a seguir vem, claro, Marcelo. Desta vez o PR comentador nem resistiu a comentar os vários discursos do Papa, revelando até, antes de ser divulgado, que já sabia onde seria a próxima JMJ. Marcelo a ser Marcelo! António Coata não apareceu muito, porque lhe deu muito jeito toda a agitação, antes, durante e depois, permitindo-lhe ultrapassar os maus momentos das últimas semanas, mais uma vez com o conflito com os professores à frente. Mesmo assim, ainda lançou algumas pérolas, como dizer que, mais uma vez, as polémicas não se justificaram, lembrando a EXPO 98 e o EURO 2004. Mas não há comparação possível com o certame de 1998, que modificou a cidade de Lisboa de forma marcante, como se pode comprovar passados 25 anos. Já o EURO e os estádios às moscas de Aveiro, Coimbra, Leiria e Algarve, são bem demonstrativos da falta de justeza do projeto. Mas Costa, no final do certame, também referiu que o investimento do Estado já estava pago. Não percebo, nunca percebi, como se fazem estas contas do famigerado retorno financeiro em eventos desta dimensão e a rapidez com que se fazem. Mas o defeito deve ser meu. ◄
- Publicado no Jornal PALAVRA, edição de agosto 2023
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